28 de março de 2010

Ao balcão

Dizes
-Já não há cafés como este.
Foi o início da nossa conversa. Eu à espera do meu prego no pão e tu a dizer-me que o café era bom. E quando respondi
-Há este
achaste piada da mesma forma nervosa como abriste a conversa.
Da primeira vez que te trouxe cá nem conseguias chegar ao pedal, chamemos-lhe assim, do banco. Dizia-te eu
-Os homens sentam-se ao balcão
e tu todo orgulhoso à espera da tua primeira coca-cola.
Temos uns pais excelentes mas eu tive a tua idade mais recentemente. Fiz merda há só uns anos atrás. E, ao contrário dos pais, posso admitir as vezes que fiz borrada.
Espero pelo prego e tu a olhar vagamente para o teu bolo de chocolate. Noutra ocasião ditar-te-ia as regras de comer ao balcão. Regras que não existem e que eu inventava na hora para te chamar criança. Uma dessas regras é, definitivamente, não comer nada doce à hora de refeição ao balcão de um café.
Fui eu que te ensinei a jogar bilhar e que te disse que fumar não te fazia parecer mais fixe. Jogar bilhar sim. Ensinei-te a conduzir a minha motorizada e deixaste de dar voltas no carro podre do teu amigo antes de teres a carta. Mas lá está, há borradas que ninguém consegue tapar.
O prego chega
-Meu... Estava tudo a correr bem. Só que pronto, aborreci-me e devia ter tido cuidado.
-Não, não devias ter tido cuidado. Acabavas com a moça e depois comias a outra. Na boa, sem dramas. E devias ter começado a discursar antes da comida vir. Come e cala-te.
Como em casa quando as notas caíam a refeição foi desaparecendo em silêncio, dentada a dentada, abrindo caminho pelas gargantas contrariadas. Os cafés que servem refeições ao balcão têm esta particularidade de nos aproximarem do chefe do café. E ninguém leva lá as mulheres, os casais ficam nas mesas da sala, atrás de nós. Esta é mais uma regra do comer ao balcão.
-Rapaz, ouve-me. Eu tive de aprender sozinho como as coisas se passam e como tudo o que fazia me lixava. Dei cabo do carro dos pais quando andavas no quinto ano, apanhei a primeira bebedeira quando andavas no nono. Tudo coisas para as quais te alertei. Agora pensa numa coisa, tenho quase trinta anos e estou aqui contigo a ensinar-te meia dúzia de coisas sobre como comer ao balcão. Não me vês ali sentado à mesa com uma mulher pois não?
-Não.
-Acredita em mim. Tens uma ou duas boas oportunidades. Há miúdas que usas e aproveitas e há mulheres às quais te agarras e não largas mais. Tu nunca tiveste acidentes de carro, foste para o hospital com uma bebedeira ou fumaste umas ganzas porque eu fui à frente e fiz essas merdas todas. Nunca tínhamos falado das minhas namoradas mas, se tenho esta idade, vivo sozinho e como sempre ao balcão deves fazer uma pequena ideia das asneiras que fiz.
Tu parado a olhar para o prato manchado de chocolate. Pareces ter apetite para mais.
Eu a desejar já não ter que me preocupar contigo com um nó na garganta.

21 de março de 2010

Correio de Domingo

Todos os Domingos a mesma comoção na minha rua. Comoção de choro e tristeza, não de agitação. Como encomendas, crianças trocam de mãos e adolescentes trocam de carros. As receptoras das encomendas, as mães, revelam a forma como o casamento acabou pela forma como reclamam a encomenda. Há as que ficam no carro a apitar com má cara, as que sobem de bom grado. Há as que vêm com os novos maridos e as que olham de lado para a saca da roupa e o cheque de assinatura ainda fresca dizendo para a rua toda ouvir algo que não ouço porque vivo no terceiro andar.
Os remetentes das encomendas, os homens estão condenados a entregar sempre bocados seus, esses são iguais, com mais ou menos disfarce lá vão à janela ver os carros das destinatárias desaparecer na esquina, numa destas ruas pequenas que ainda tem cruzamentos, um de cada vez. Na carteira e nos móveis fotografias dos pequenos envelopes que eram os seus bebés e, em alguns casos, as belas caixinhas e impressionantes volumes em que se tornaram. No frigorífico as lembranças do tempo em que na escola faziam postais do dia do pai, naquela idade em que ainda não têm vergonha de dizer
-Amo-te pai.
As encomendas, de todos os tamanhos e feitios, ora vão tristes ora vão alegres. Quem já recebeu uma encomenda em casa sabe que há pacotes alegres e outros tristonhos, nenhuma novidade aí. Só que há sempre um apego aos pacotes desembrulhados e ligeiramente esmurrados, que passaram por quatro funcionários dos correios antes de nos chegar às mãos. Ao abrir, um defeito ou uma peça partida e a devolução ao remetente, breve como se exige.
Cá em casa bastante comoção e muitas prateleiras vazias, espaço de sobra para mais livros, mais filmes e mais música porque para já não quero fotografias de pequenos envelopes na praia, disfarçados de super-heróis, com os avós ou em fotos encenadas. No entanto guardo algum espaço no frigorífico para dizerem que me amam e mantenho remetente e destinatário dentro da mesma morada.

14 de março de 2010

À distância

Tenho um gosto por jogos de computador. Demasiado dirias-me tu, se eu te perguntasse o que achas disso. É verdade que a prática é amiga da perfeição mas, tal como nos jogos de computador são os intervalos que revelam novas inspirações.
Muitas vezes jogo "coisas de corridas" como tu lhes chamas e quase outras tantas vezes exploro uma linha de corrida que me parece ser a ideal ou uma configuração de suspensão que me parece ser a mais indicada para a abrasão da pista. Tento e pratico e nada resulta. Passado umas semanas volto ao jogo e tento coisas novas, inspiradas pela novidade experiente de quem volta a uma coisa que conhece bem mas ainda não completamente.
Eu até diria que com o amor também pode ser assim, o que não resulta hoje pode resultar após umas semanas de separação desde que aplicado de forma diferente, em tempos diferentes.
Eu diria isso, se tu não achasses imensamente parvo.

7 de março de 2010

Uma caneca cheia de varanda

Tenho uma janela deprimida no meu quarto. Uma janela virada para uma parede onde tal qual um tronco desce um cano liso, pintado com o mesmo verde-caule da parede e pelo qual corre, em dias de chuva, toda a água que o telhado do prédio da frente recusa acolher. Neste quarto pequeno, Xis Xis Solteiro como lhe chama a minha mãe, poucas histórias acontecem além do guarda vestidos emproado, da cama com algum uso e da tal janela que não se vê ao espelho na parede do prédio da frente.
Nos dias de sol, quando quase nunca cá estou, penso na tua varanda e como podia ter morrido umas quatro vezes caso o resguardo em ferro forjado decidisse desfazer o abraço que tinha com o granito. Às vezes olhava lá para baixo a tentar perceber se sobreviveria e raramente me sentia optimista. Nunca tive curiosidade em tirar essa teima a limpo, note-se, mas tinha a queda tão calculada como tinha passado horas a pensar como fugir pela varanda no caso de nos acordarem numa noite qualquer a uma hora qualquer com uivos de fogo e socorro, breu e tosse por todo o lado e eu, com a maior das calmas, a salvar-te pelo canto esquerdo da varanda, bem próximo da janela do teu vizinho que, entre tantas noites a esperar-te, fui aprendendo a abrir do lado de fora.
Numa dessas noites em que te esperava -podia ter morrido duas vezes só nessa noite porque me debruçava no ferro para ver se aparecias- pratiquei como fazer um chocolate quente pastoso / enjoativo e como fazer com que a primeira qualidade não causasse a segunda. Ao chegares, a única caneca que restava era uma vermelha que lá tinhas sem asa e tu a corrigires
- É pega, não é asa.
eu a sorrir, assegurando-te
- Passo muito tempo de cabeça no ar, não preciso que me pegues, prefiro que me...
o pensamento a meio e tu com uma mancha de chocolate no queixo a desafiar
-...preferes que te ase?
contrariado admito que essa minha condição de cabeça no ar inclui não ter os pensamentos acabados na cabeça quando começo a falar. Apago da tua cara o sorriso e a mancha de chocolate num só beijo mas depois da tua varanda não duramos muito, o inverno acaba com os amores porque estes não podem ir à varanda e não há chocolate quente que simule aquela viscosidade nada enjoativa dos carinhos leves ao sol.
Depois da tua varanda vim a conhecer esta janela cabisbaixa que, já estive a ver, em caso de incêndio não me deixa escapar. Caso uma desgraça aconteça hão-de encontrar uma caixa preta com uma janela de plástico e lá dentro uma caneca igual à tua, tão alegremente inteira que se a tirar da caixa ela voa janela fora.
Dentro da caixa a caneca e dentro da caneca um post-it a dizer:
"Para que nem nas canecas te faltem asas, pega as minhas."