23 de setembro de 2012

Rua

Há dias em que a minha rua jorra de carros e pessoas. Uns para cima e outros para baixo como se fossem sangue venoso e sangue arterial e a minha rua, naquela largueza estreita como só as velhas cidades têm, fosse uma veia daquelas importantes. Naquele tempo em que a subias trazias-me oxigénio puro e nem com a rua cortada o fornecimento dos nutrientes me falhava. Depois os carros só desciam. Depois decidiram só permitir que subissem. Achei bem. Chegavas mais rápido e trazias mais tempo contigo para consumirmos com o objectivo de nos saciar.
Depois o teu carro avariou, a linha de autocarro que cá parava parou de cá parar e tu deixaste de cá deixar o oxigénio e os nutrientes e ficou para aqui uma acumulação de sangue venoso mais azul escuro que o azul escuro que usam sempre para o representar nos livros de escola. Azul que ninguém vinha cá colorir. Mesmo depois dos autocarros voltarem a respeitar a paragem que recolocaram aqui à porta. Mesmo depois de eu comprar vasos.
No outro dia, como na canção que nesse dia ouvira, descobri que vives, gostei de o saber mas não perdi a cabeça como na canção se recomenda. O chão falhou-me e aquele acréscimo de oxigénio deu-me uma pequena euforia que fabricou o sorriso que tu tinhas levado contigo. 
Nesta rua que é tão minha, os carros sobem a motor e as pessoas descem a pé. Há pessoas a subir também de bicicleta motorizada e pessoas com compras à espera do autocarro naquela paciência de quem só pensa na sua casa. Eu vou limpando o passeio a balde e esfregão, faço um corredor que vai da caixa multibanco do fundo da rua até à minha porta. Hei-de fazer os 764 metros de cimento reluzir como se fossem mármore e tu subirás, se não escorregares, até à minha porta onde dirás como sempre
-Cheguei, trago-te coisas
como se nunca o tivesses deixado de dizer ou se nunca o tivesses dito a outros noutras ruas e noutras paragens.