1 de janeiro de 2015

Extraordinariamente anual

Hei-de ser encontrado morto com a minha melhor camisa, engomada e atada com uma gravata impecável. Hei-de ter o teu nome nos braços e nos lábios. Hei-de ter a forma do teu corpo no peito e os teus olhos nos meus quando souberes que me mataste. Hei-de ser encontrado a vaguear pela cidade, pelo campo no mar. Balbuciarei que sei quem me matou, gritarei
-FOI ELA
a quem me olhar com a censura de quem julga ver um bêbado. Quando cair, estarrecido pela tua partida, não farei som algum. Serei um soldado desconhecido, um entre cem mil, sem nome ou pátria ou familiares directos.
Não ambiciono ficar na história, muito menos na tua. Daqui a uns tempos, quando me encontrarem prostrado ninguém saberá. E quando renascer, algures no mundo alguém saberá ou quererá saber de mim.
Até esse dia morro todos os dias um pouco, mesmo neste dia em que o ano começa tal como o anterior acabou: Eu a morrer na minha melhor roupa, de boca aberta sem emitir um único som.

23 de novembro de 2014

Mau Tempo

Há mulheres de quem se fala em murmúrio. Há mulheres de quem nem se fala não fosse essa materialização em palavras conjurar imediatamente a sua presença ou uma agitação coronária, uma comoção cerebral ou uma morte tão rápida que nem desse tempo para ais de alerta. Há mulheres quentes para as quais ainda falta inventar um tecido protector ou um gel curativo, há mulheres frias que deixavam neves eternas aqui em casa e em mim se eu falasse delas.
Daí minha única tempestade, meu terramoto, minha peste florida, eu nunca falar de ti. É medo, triste e pesaroso por não te partilhar. Não queria que ficasses cá fechada mas se te deixar voar explodes comigo e com este ninho fortificado onde te seguro. Só escrevo sobre ti porque as palavras são o meu território e nelas consigo conter-te como numa pequena cadeia, uma teia de aranha onde te posso guardar para mais tarde, num dia de mais coragem, te consumir e fazer-te meu sustento.
Nesse teu cabelo de fios leves, nesses lábios onde desenhas os ventos suaves da tua música há mais vida do que a que eu posso viver num século. No ar suave que te abandona a cada palavra há açucar suficiente para arruinar uma sanidade, duas vidas e três familias. Andam a escrever livros e a compor músicas, fotografias e pinturas à tua procura. És o rochedo que já nasceu esculpido e que não dá para facetar com mais limpidez. Tens em ti o calor do mundo, um vulcão que me assola de lava e me constroi uma montanha no peito expelindo rochas para todo o lado. Sou a traça que voa para a perdição luminosa, incinerado pela tua luz e pelo desejo de morrer num segundo dentro de ti.

16 de novembro de 2014

Verão em Novembro

Quando um dia tu me leres e já nada importar o que eu te escrevo, saberás que foi difícil manter-me por perto quando todos os polos se repeliam, quando os meus astros invertiam a gravidade e me cuspiam para longe de ti, minha estrela, meu asteroide, minha força final e extintora. Ficarás a saber também que acreditei até ao fim, como numa missão que só eu sei como resolver, se o fim chegou e depois do fim tu descobriste a garrafa de vidro onde deixo estes textos para leres se a maré vagar de feição.
Se um dia nos extinguirmos e nada ficar além de bacterias, ficam os poemas que te li e os que ouvi a desejar dedicar-te, escritos por gente já morta e ainda viva que sem te conhecer falava de ti com tanta verdade como se fossem teus amantes.
No dia em que leres isto, anos após a nossa separação ou quando o nosso segundo filho fizer oito anos, vais saber que todas as horas e orientações de que precisei sairam da tua mão, da incerteza do teu toque na extensão medrosa dos teus dedos nos meus. Saberás que era no rápido abraço que as aves migravam no nosso calor e no beijo furtivo que badaladas vibravam quem sabe do outro lado do mundo.
Quando tivermos a idade das recordações, para o bem ou para o mal, abraçados ou fatalmente desavindos, ficas a saber que hoje tenho saudades tuas e era tão suficiente vires cá a casa fazer amor comigo duas vezes antes de jantar, sorrires numa sesta e dares-me a mão antes da vulgaridade do nosso amor encandear a rua e o jardim até que as aves voltassem neste Verão em Novembro.

7 de setembro de 2014

Alfarrabista

Queria tanto ser um editor de coisas novas. Encontrar novas escritoras, novas obras com novas personagens onde colocar novas capas para adornar as prateleiras que trago em mim. Adorava ter novos enredos policiais e novas esperanças amorosas para encher os sábados chuvosos de sol esperançoso. Gostava de ter novas ficções e novas biografias.
Julgo que não consigo ser assim como queria e encontrar na novidade algo melhor do que ficou para trás em obras já lidas e aventuras já vividas. Sou um alfarrabista de amores que compila os falhanços em páginas amarelecidas a criar bicho. Às vezes entra-me uma freguesa na loja e tenta trocar um livro lustroso a cheirar a tinta e papel branco mas raramente passa da porta. Sou avesso à troca.
Claro que, como nos livros que guardo, um dia tinhas tu de me bater à porta a trazer o teu próprio livro amarelo não para trocar mas para partilhar. Aparentemente nos livros mais antigos há uma duzia de páginas por escrever onde se podem tirar notas ou, espero eu, escrever um último capítulo onde se salva a donzela, se matam os maus, e seguem os heróis felizes para sempre.
Para ti tenho sempre uma porta aberta e o marcador de livros na página mais fresca, mais pronta. Para ti, não o lápis fragilmente apagável, mas a tinta permanente da minha caneta mais ornada, aquela que estava na gaveta à espera de mãos firmes como as tuas com essa pele que me faz sorrir e chorar e que bebia de um só trago se pudesse.

15 de junho de 2014

No banco

Faz anos que em Madrid me sentei a ver um bando de rapazes e algumas raparigas voar em patins em linha. Os tipos colocavam uns tantos copinhos de café de plástico no chão como percurso de slalom e lá seguiam acima e abaixo das formas mais criativas e dançarinas sem tocar nos ditos copinhos. Eu estava sentado no banco daquele parque à frente de um teatro, sem nada marcado ou planeado nem ninguém que me esperasse noutro local que não aquele. Eu era um anónimo que à época mal se conseguiria ter de pé nuns patins, quanto mais dançaricar entre obstáculos. 
Aqui sentado agora ao computador, sem ninguém à minha espera em lado nenhum, dificilmente me consigo emocionar como naquele dia. Nestes quase três anos que passaram tenho-me sentado muito menos em parques a ver talentos jovens, não dou tantas moedas a artistas de rua, não reparo tanto na poesia stencilada da neo-delinquência sublime. Dou por mim ocasionalmente feliz, abençoado por ter muita sorte e o orgulho dos olhos mais bonitos do mundo a sorrir quando postos nos meus.
Ainda assim tenho saudade da dor de barriga de não saber nada, de estar perante o assombro de ter uma noite em branco sem nada planeado, tenho saudade de fazer coisas admiráveis e que me pasmam com a minha coragem. Descobrir que há coisas aqui em mim que precisei de tanto tempo para descobrir e fazer emergir.
Armado dos teus olhos, a voar nos teus braços, vai ser tudo muito mais fácil mas conto ter-te no banco a olhar-me. Não quero que sejas as minhas rodas de patim. Acredita que é um favor que te faço ao te querer só assistência. Quando me aplaudires, dou-te um abraço e vamos para casa porque amanhã trabalhamos.

8 de junho de 2014

O exagero

É com exagero que chegas sempre, um exagero de cheiros e sorrisos e eu a gostar de ti de forma exagerada também. À tua chegada parece ser sempre dia de ano novo e o fogo de artíficio a nem chegar para tanta alegria e esperança. É como se, sempre que chegas, o meu alarme matinal tocasse a minha música preferida, consistentemente, durante anos ou um resto de vida inteira...
Ficamos sempre à porta de um céu enorme, a segurar uma onda imparável, quando estamos juntos e lá fora a vida continua sem nenhum de nós. 
E é assim seres o meu maior segredo, o ingrediente chave da fórmula dos sabores divinos que unem a familia à mesa, a razão de sorrir e florir inverno adentro.

4 de maio de 2014

Bom dia, Joana

Encontraste-me feliz Joana, mesmo feliz, não um sorriso de reacção a adversidades ou de desafio mas um sorriso largo e franco. É justo que assim seja, tem dado trabalho fabricar esta felicidade, muscular esta massa flácida de emoções com que nasci, domar estas paixões que tanto me perigam e me fazem embater de frente nos outros.
Chegaste neste dia de felicidade no qual acordei numa cama que não é a minha, com um coração entre as mãos que nem é o meu, e o sorriso que amo a dizer
-Bom dia
com a voz da surpresa alegre de quem sente o privilégio de ser heliocêntrico para alguém. Esse orgulho de se ser único no mundo logo ali desde a manhã. Escolheste mal o dia Joana, aparecerias há três meses atrás e o meu sorriso era só teu, a minha felicidade era tua responsabilidade. Eu seria toda a tua obra.
Assim segues o teu Domingo, levas contigo esses olhos a condizer com a blusa, na cor e limpidez. Agradeço a simplicidade da tua leveza e do presente que deixaste, vou guardá-lo para usar num dia no qual seja dificil sorrir. Quebrar em caso de emergência o invólucro de tão grande carinho como é o teu. Confia em mim Joana, o que cá deixaste vai ser útil um destes dias.
Mas não hoje. Hoje estou feliz e nem tu, com essas constelações no cabelo inquieto e esse toque de dedos primaveris, me consegues fazer sorrir mais.
O pouco que ficou cá de ti, guardo cá dentro ainda assim. Fica a amadurecer  e se regressares vais-me encontrar sorridente no reconhecimento de saber quem tu és e a dizer
-Bom dia
com o carinho de quem te poderia amar noutro continente, noutra década.

20 de abril de 2014

À mesa

Prometeram-me que o meu ano passado era o início de tudo. Depois desse 2013, em nada aziago, a cor que os minutos seguintes traziam tornariam tudo o resto anterior numa escala de cinzentos sensaborona.
Poeta, minha amiga de infinitas canções, tinhas tanta razão.
A tal promessa, dada à mesa como é dever de todas as grandes promessas, faz agora um ano e depois das montanhas que atravessou aproveita agora um planalto para ver a vista e descansar. Foi uma boa viagem e merece o descanso dos justos nesta caminhada empedrada a desilusões e recuos que só desembocaram em avanços mais pronunciados e fulgurantes. As pedras fizeram-se para calcar e depois de por elas passar esquecê-las. Foi o que fiz, seguro que ainda assim tinha de olhar para a frente para te encontrar, meu vento, meu trigo, meu oxigénio. 
Minha amiga, obrigado pela promessa, devo-te o resto da minha vida.

6 de abril de 2014

Primavera privada

Às vezes bastava chegar à rua e ter em ti a minha casa, a minha janela. O número de porta onde me encontram. Por vezes penso que subiria mais uma vez essa rua se no final dela tivesse em ti um telhado, uma caixa correio e o tal jardim de que falávamos, onde os limões mais amarelos do mundo cresceriam, cairiam e apodreceriam sem o tempo de nos preocuparmos com isso.
Quando, súbita, me chegas à memória, com essa Primavera do teu desabrochar, do teu florir, do teu rebentar de vento quente sinto-me glorioso e toda a orquestra do meu organismo se organiza para te amar.
Para crer que tu és real e que o teu sorriso não é somente o resultado de uma noite que ainda dura, tenho de olhar bem nos teus olhos, naquela forma alucinada e séria com que por vezes te olho, por não estar certo de estar prevista a existência desse matizado de cores dos teus olhos, que ficam claros e escuros com o abrir e cerrar do sorriso que só tu tens. 
É-me difícil acreditar em ti, como vês. Mas basta que me abras a porta da nossa casa, das nossas janelas, do nosso jardim. Basta que atendas o telefone e abras as nossas cartas. Basta que os limões continuem a cair e a alegremente se deixarem ignorar.
Basta-me que sorrias.

30 de março de 2014

Sal

Para te louvar, para todos saberem que há uma pessoa como tu cá, neste planeta, debaixo destas regras dos mortais e num país com alguma montanha e alguma planície, desenho palavras e começo a deslizar em adjectivos e comparações para chegar ao tracejado do teu cabelo, para demonstrar a aquosa liquidez dos teus olhos e para fazer-te chegar a quem nunca te viu e não sabe quem tu és.
Nos sofás onde nos demolimos, derrubamos a parede da farsa e da pouca circulação do ar, vem a mim a amendoada brisa do teu hálito nesta admiração próxima, terna e parece que lá fora faz sol de novo e há aves que acordam mais cedo. No pasmo de não saber o futuro e de que temas vamos falar amanhã guardo a mais pródiga certeza de ir sorrir, sorrir muito, com aquele sorriso de quem não tapa os dentes com vergonha e dá ao mundo a atenção que este só por vezes merece.
Se pudesse enchia-me do teu ar, se pudesse mergulhava em ti e deixava-te preencher-me e nunca mais secava. Nem ao sol, nem ao sal. 
Mas é isto ser teu, a reserva de tempo destemida, o saber que há janelas onde circularemos livres até ao sofá, a entrar por esta só-nossa juventude a escrever correspondência solar e a assinar:


Teu,

16 de março de 2014

Sapatos rubros

Ando a ler mais sabes? Acho que só se consegue preencher de palavras úteis e belas um vocabulário se as inventariarmos através da leitura. E para ti quero mais palavras. 
Naquele dia em que as tuas pernas pararam de dançar e se sentaram pacíficas na mesma mesa que as minhas, no banco tão ao meu lado que por vezes as tuas pernas e as minhas até se tocavam, percebi que não tinha tantas palavras para te oferecer quantas tu me davas a mim e quantas merecias. Restou-me o olhar e uns tantos toques fugidios para comunicar o quanto o teu perfume me assolou de tudo que era calma. Se as tuas pernas não estivessem ali paradas, tão serenas e desistentes, logo te puxaria para as pôr de novo em movimento, na hipnose do ritmo, no tempo da nossa batida unissona que em linha recta nos poderia até levar dali para fora.
Apetece-me dissolver as tuas pernas num copo de água e bebê-las. Apetece-me pô-las a desfilar para mim, na minha direcção, infinitamente até que as viesses demolir e apaziguar ao meu lado, num banco justo ao meu ou no meu colo, na minha cama. Para essas pernas, percebo agora, as palavras são curtas.
Para as tuas pernas, se são elas que trazem o teu sorriso e a tua alvura perfumada, construo uma estrada acolchoada, uma via verde para os meus braços, um par de sapatos fáceis de tirar. Podes vir quando quiseres, traz tudo o que é teu e não deixes as pernas à porta, eu e elas temos conversa para pôr em dia.

9 de março de 2014

As maestrinas

Dá para acertar o relógio por vós minhas almas, minhas musas, meus amores. Podia saber que hora é precisamente esta só pela simples duração do abraço que vós me haveis dado colectivamente naquele dia em que tanto dele precisava. É bom ter assim algo com que contar. Sois como maestrinas unissonas que me organizam a orquestra e me sincronizam os ritmos. Todos estes chinfrins dentro de mim só saem ordenados porque vos tenho a vós ao leme.
Assim tanto que vos devo e tanto falho em devolver, porque me parece que nem em dobro ficaria a dívida desta sanidade feliz que me dais paga, por todo este amor que me sossega. Esta constância em saber que quanto mais alto o trapézio mais resistente a rede que me aguarda, a doce crença que em cada esquina tenho um par de olhos por cima do meu ombro a olhar para a frente, a impelir o meu risco calculado, esta minha forma consciente de ser louco e não me preocupar com isso.
A vós, maestrinas desta minha desmesurada Primavera, ensaiadoras deste meu folclore moderno, encenadoras desta obra prima de três paredes só, uma ovação de pé e um agradecimento que durem dois séculos. Sem reservas e sem medos, sou vosso para sempre. É tudo que posso dar, esta vida inteira que tanto me coloris de ventos e flores, na duração de três mil abraços cá dos nossos.