26 de fevereiro de 2012

Dessaturação

Ando para comprar um cachecol laranja há meses. Mais de um ano talvez. Sou daquelas pessoas que acreditam no poder da cor para nos salvar a boa disposição e por isso mesmo só quem não me conhecia achou estranho ter namorado umas semanas com uma daquelas neo-hippies que fazem balões de sabão do tamanho de adultos na maior avenida da minha cidade. A roupa dela, a pele dela, até os olhos dela, de uma cor mais viva do que eu alguma vez tive ou conheci. Toda ela era vermelhos e laranjas e quando se cansou do meu cinza foi com a dessaturação da previsibilidade que a vi ir em direcção a novos caminhos de errante, numa avenida mais longa e mais recta que esta da minha cidade.
Falaram-me de verdes e azuis criativos mas foi no laranja que coloquei o meu objectivo. Ela, a artista de rua como gostava de ser chamada, não se deixava enganar e dizia-me
-A tua sala precisa de uma parede laranja
enquanto eu a tentava convencer que ter móveis de duas cores já era cor que bastasse. Na sala, como em mim, a roupa nunca pode ter mais de duas cores e essas são muitas vezes uma parte branca para uma parte preta. A sala precisava de uma parede laranja e já a teve precisamente no dia em que ela partiu com o pré aviso de uma chamada e sem chegar a ver a minha pintura apressada. Percebi então que eu também preciso da minha faixa laranja mesmo que ela não esteja cá para ver.
Ando hà meses para comprar um cachecol laranja, já disse, para trazer a cor que ela deixou, quase sem querer, na minha casa.

12 de fevereiro de 2012

A nossa praia

Havia uma praia abandonada naquele sítio e naquela altura. Às vezes, diziam, até a água se ausentava e enrolava noutras areias, colorindo de espuma outras rochas. Mas nessa praia, orfã de gente, estávamos nós a dar-lhe calor e pés que a marcavam e lá ficavam até ao eventual regresso da maré. Os nossos pés, dizia-te eu, contavam a história de estarmos juntos porque as pegadas misturavam-se e liquefaziam a areia como naqueles diagramas com solas, setas e números que ensinam a dançar Tango e Cha Cha Cha.
Cumprimos a promessa de dançar à hora das primeiras luzes da manhã. Se houvessem galos eles cantariam, tenho a certeza, mas à falta deles surgiram umas tantas gaivotas e periquitos-de-colar que antes do sol já coloriam os ares. Àquela hora, também nós fomos o primeiro sol, dançando próximos como duas estrelas que no encontro orbitam e que numa chuva amena se beijam ao som de nenhuma música.
Na realidade não estávamos na praia, não havia gaivotas nem periquitos-de-colar. Estávamos num passeio de uma rua qualquer a ouvir a rouca música dos poucos carros que passavam mas, ainda assim, o dia nasceu à hora da nossa dança e os lábios só se separaram para dizer, apontando
-Look, there's the sun
sem tirar os olhos dos teus.
É que o sol tem a graça de não nascer só nos montes e naquela estrada sem areia nem mar ele atirou umas dúzias de raios que inventaram um par de pássaros dos quais não sei o nome. O par de pássaros, que se note e não obstante a liberdade, não somos nós. São mesmo pássaros, asas, bico e música. Despiste-me de poesia porque agora anda por aqui uma ausência tua que nunca me abandona.
Após a dança não sonhei com mar e praia. Após a dança atingiu-me que como eu e tu, as estrelas, não havia mais ninguém no nosso planeta porque, àquela hora, só ali o sol nascia dançando e os sonhos, esses, são mais saborosos de olhos abertos.

5 de fevereiro de 2012

Pigmento

Dizem por vezes relativamente a Cesário Verde que este foi o primeiro escritor-pintor de Portugal pela forma como inseria ricos mundos pictóricos nos seus poemas. Várias vezes senti as mesmas dores que ele, ignorado pelas intrépidas moças para as quais, à altura, eu não estava à altura.
Mas até Cesário, cálculo, teria dificuldade em encontrar na sua paleta palavras para descrever certas cores e foi disso que me lembrei quando me disseste nessa tua língua complicada de entender que os teus olhos tinham uma cor
-Indefinível
com essa mesma palavra, usada inocentemente e de forma espontânea, tentaste-me pintar uma aguarela que respondesse à minha pergunta
-Afinal de que cor são os teus olhos
dita naquela língua que é tua e da qual só sei uma quantidade limitada de frases.
De facto indefiníveis eles eram e assim ficaram sem que eu me preocupasse muito com isso porque o melhor que nos acontece fica nesse intermédio das coisas mágicas que acontecem sem explicação, imagem ou palavra. Entre nós houve e haverá daquela poesia que não se guarda numa folha, o teu cheiro não cabe em nenhum frasco, o sabor do teu beijo não existe em nenhum condimento de nenhum mercado bairrista de nenhuma cidade do Mundo.
Dizem que aguarela é uma das técnicas de pintura mais difíceis de dominar. Tenho então tempo para aprender a pintar com a água tingida até que um dia vou descobrir que cores tenho de misturar para chegar ao tom dos teus olhos e aí parto à aventura de descobrir novos tesouros teus sobre os quais me debruçar.