14 de novembro de 2010

X

Uma vez disse-te que se inspirar fundo fizesse tão bem como diziam, os humanos teriam evoluído para só inspirarem fundo. Cada um dos nossos milhares de movimentos respiratórios diários seriam longas inspirações. Tu, não habituada a teres de te explicar na minha língua dizias que não sabias falar comigo.
E não sabias mesmo. Dei-te emprego em 2005 por seres a reveladora de fotografias mais talentosa que tinha visto. As tuas fotografias não eram nada de especial mas a claridade, a focagem, os jogos de luzes na tua pós-produção eram uma arte em si própria. Que fosses imigrante ilegal era um pormenor que estava disposto a ignorar.
Depois havia o teu cabelo. Nas poucas conversas fluídas que tivemos contaste-me que na tua terra havia muitas loiras altas portanto o teu cabelo negro e a tua estatura mediana eram vistos como exóticos. Portugal era um bom país, havia muitas mulheres como tu.
Mas a questão é que não havia. Tal como ninguém - nem mesmo eu - conseguia com que uma fotografia ganhasse aquela fineza e detalhe só com o uso de químicos ninguém tinha esse teu cabelo. Essa tua graça.
Eu sou um amante desajeitado. Tento atrair por antagonismos. Discutíamos muito e eu gozava o facto de não entenderes o fascínio por poesia, mesmo depois de teres lido, ou assim o julgo, um livro traduzido que eu te dei e que me deu a mim imenso trabalho a encontrar. Dizias que a vida era como as tuas fotografias (dizias sempre tuas fotografias) uma coisa acontece, há um intermediário, a coisa modifica-se.
Eu gozava-te porque dizia que o amor era um intermediário, a poesia outro, a cor dos teus olhos era só mais um, mas esta terceira parte tu não entendias. Perguntava-te se o yoga não era para ti uma experiência poética e tu só me dizias que o yoga resumia-se a respirar fundo.
Preocupava-me esse teu niilismo bem como o final da fotografia de película. Comprei uma impressora com um quinto do teu tamanho e tu um dia tiveste a bondade de me dizer adeus, beijo na cara, mão no braço. O cabelo preso para não me prenderes a mim nele. Tanta a bondade e tanta a poesia que era preciso alguém que nela não acreditasse para a transportar com tanta leveza.
No outro dia no correio estava um mapa de uma cidade do teu país, um X marcava uma rua.
"Aqui. Ainda fotografia química. Vem cá."
Ando aqui a congelar uma lágrima para que ela não caia no mapa e borrate o X. Todos os dias tomo o pequeno-almoço e olho para o mapa.
Lavo a loiça, respiro fundo, vou trabalhar.

2 comentários:

  1. Tenho aqui vindo na esperança de ler mais um novo texto fantástico mas não tenho essa sorte então vou-me perdendo nos antigos... Adoro!! Simplesmente adoro pois tocam no fundo da nossa alma e fazem-me recordar coisas que ou se passaram tambem comigo ou então recordar aquilo que para mim nunca existiu... será possivel recordar e ter saudades do que nunca vivemos?!?
    Espero que continue a escrever.

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  2. Isa!
    Muito obrigado pelo comentário!
    Fiz este blogue precisamente para me "obrigar" a escrever todas as semanas. Era uma forma de manter este gosto oleado! Só que entretanto com o meu emprego e todas as outras coisas que nos preenchem os dias a inspiração nem sempre surgee comecei a escrever textos muito enlatados que publicava mas não me agradavam muito.

    Reconheço a minha falta de pontualidade e quero ver se a começar já em Dezembro mantenho a periodicidade semanal prometida.

    Vá passando Isa!


    Sobre a pergunta, não sei se será possível ter saudades do que nunca se viveu mas tudo que fazemos encontra paralelismos com o que outras pessoas fazem. Noutros locais, com outras pessoas mas existe no mundo diversidade suficiente para que ao mesmo tempo muita gente pense e sinta coisas semelhantes. Há depois o ter saudades de coisas que rasparam o perfeito mas não chegaram bem lá. Essas peças que nos faltaram em determinado momento podem não ter faltado a outros e vice-versa.
    No entanto fico extremamente feliz por partilhar sorrisos e emoções!

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