29 de novembro de 2009

Inverno

A casa não se vende, faz daqui a três dias seis meses que está à venda e para já, da mão cheia de visitas ainda nenhuma deu em sucesso. Casais jovens e felizes inspeccionam as divisões, observam as vistas e testam as lâmpadas. Ficam encantados e julgam que ali é o sítio onde vão fazer toda a vida. Já pensam até num catraio ainda sem nome para ocupar o quarto que transforma o apartamento em T2. Pensam ser aqui o seu local preferido até eu dizer
-O único inconveniente é o frio e a humidade
e o tal casal já a preparar a ronda negocial com um desconto que compense o inconveniente de ter frio e ter de pintar o quarto todos os anos. Então digo
-Estas faixas têm algumas formigas que vêm do soalho da cozinha, cuidado com os pés porque a madeira é muito frágil e parte. Depois ficam com formigas por todo o lado.
Aí o casal já murchou, o bebé vai ter de esperar mais um bocado e partem a dizer que depois dão uma resposta. E nunca mais ligam.
Hoje, lá se vai a minha jogada, tu também vens ajudar na visita, desconfiada de que esta casa tão luminosa e barata não se tenha já vendido por minha culpa. Pensas que eu saboto as visitas e então dizes-me
-Faz de conta que está tudo bem entre nós e que vamos mudar de casa porque me apetece.
E quando te respondo
-Não tenho dificuldade nenhuma em parecer feliz contigo. Isso é-me natural.
tu dizes sem olhar
-Não sejas parvo.
Com o temporal desta noite, neste inverno tardio e irado, a placa que dizia VENDE-SE desapareceu, levantou voo e aterrou num local qualquer.
-Foste tu que tiraste o vende-se?
-Claro que não. Foi o temporal desta noite. Se fosse romântico diria que é um sinal dos céus que ela tenha desaparecido e que alguém nos está a pedir que voltemos a mobilar a casa e ocupar o dois do T2.
e tu, num momento pouco suspenso, a tua resposta fácil e rápida, preparada porque sabes que as minhas técnicas de sedução são todas tão simplórias e previsíveis
-Não sejas parvo.
Ao limpar contigo a casa agora ampla com um vazio claro e anónimo relembro, quando tu e eu, jovens e felizes, passeamos pelos corredores ainda empoeirados de cimento e imaginamos como colorir à mão o quarto da Bia.
Entretanto e por ordem, fomos felizes e amamo-nos, nasceu a Bia como esperado, compramos um gato e um periquito, tu começaste a fumar e a trazer um after shave no cachecol que não era meu e um dia nem tu nem bia nem gato. Ficou na mesinha da entrada um papel de despedida, um impresso para o divórcio e, na varanda, um piriquito que não canta há mais de quatro meses.
A separação de bens prevê a venda do imóvel e só aí o divórcio tem seguimento. Seguirá o divórcio e a tua vida com um gajo que não sei quem é mas cheira bem e não deve ter ideias românticas ou periquitos afónicos. Precisas de um gajo sem drama e poesia para te chatear. Ele fica lá para um canto a cheirar bem e tu a educar a nossa Bia a chamar-lhe pai.
A placa VENDE-SE caiu e lá fora uma chuvada biblica a arrastar caixotes rua abaixo, ainda assim um casal amoroso, tu e eu com menos uns dez anos, encontrou a casa e aparece a preto e branco no video porteiro. Abres a porta do prédio, viras-te para mim, os olhos decididos mas caídos da idade e dizes
-Hoje a casa fica vendida e a nossa vida continua.

22 de novembro de 2009

Primavera

Acho que a terra, aqui, secou. Aqui e no meu caminho até ao trabalho. Na terra morta, tal como num esgoto estéril, só sobrevivem as ervas daninhas como se fossem ratazanas quietas movidas a vento e fome. Das nossas árvores, nada, até as heras encontraram melhores troncos para sugar.
Passou já tempo suficiente para árvores e plantas crescerem, na borda daquele caminho que dantes percorrias comigo, e para as frutas dessas árvores e dessas plantas crescerem, amadurecerem e caírem. Mas as coisas são assim mesmo, tivesse tudo corrido de feição, com pouca geada e mais uns tantos dias de sol e já nós tínhamos tempo de sobra para pôr um fruto dentro de ti, deixá-lo crescer e amadurecer e passados nove meses cair de ti minha pequena árvore. Não bastou a paciência para nem mais um dia ou dois, quanto mais para nove meses e agora os sorrisos aparecem-me de semanas em semanas.
Como ia dizendo, passei naquele caminho onde religiosamente distribuíamos os caroços de frutas que comíamos e sementes de flores descartadas pelas floristas, na esperança de que, sei lá, qualquer coisa e no dia seguinte aquilo fosse um pomar com uma estrada no meio onde só cabiam dois pares de pés apertados pelas mãos dadas. O terceiro par podia ir ao colo como uma pêra ou rente ao chão como uma borboleta.
Agora acredita em mim porque o vi, nada cresce na lama. Do nosso caminho tão delicado fizeram um estaleiro de obra. E não, não foi o nosso éden que se tornou num destino turístico que justifica um chalé cuidado, foi sim aquele meio quilómetro de terra que ganhou um preço por metro quadrado e foi vendido às peças, despedaçado e desossado como uma carcaça onde irão um dia surgir moradias espaçosas tão estéreis como o chão que envenenaram e as famílias lá dentro a viver uma vida de flores amarelas, fruta enlatada e pão seco sob uma maldição shakesperiana que os parta todos.
Podias vir comigo lá um dia, levantávamos alguns paralelos da calçada e plantávamos uma mão cheia de pevides de melão e quem sabe, qualquer coisa e no dia seguinte nós os dois a levantar a maldição a uma das moradias com tulipas no jardim, bananas na travessa e uma borboleta rente ao chão com os teus olhos a saltitar no relvado.

15 de novembro de 2009

Outono

Não é fácil ser homem. Viver num Outono permanente. Esta estranha espécie de peso amargo nos ombros. Estes segredos dolentes como o frio inesperado naqueles dias de folhas estaladiças no chão em que a roupa de Verão deixa de agasalhar e proteger.
As mulheres serão de Vénus e os homens de Marte, nem discuto essa teoria, mas sei, com toda a certeza, que os homens são Outono e as mulheres Inverno. A tristeza feminina é frontal e torrencial. Tem uns dias brandos mas depois vêem em conjunto uns tantos dias de tormenta em que só em casa se está a salvo. Os homens não chovem. Há aquele nariz pingado e os pés frios. Há as folhas ora secas e barulhentas ora húmidas e escorregadias no chão. Há a ameaça de mais humidade e mais frio que nunca se confirma.
Os homens têm em si transições tristes, pores do sol com nuvens carregadas e pés revestidos a sapatilhas molhadas pela chuva. Carregamos connosco as saudades de casa, a ver na internet vídeos da nossa cidade com a fé no sinal de banda larga que estreita o contacto com as memórias só um pequeno soluço de cada vez. Andam-nos no corpo as saudades da mulher e dos filhos, namoradas, ex namoradas e amores por cumprir.
Saudades do tempo em que as ruas eram nossas e em vez de terem um nome tinham uma pessoa. Aqueles trajectos aos quais nunca prestamos atenção até que surge a paixão por alguém que mora naquela rua. O nome da rua, o destino da linha e o número do autocarro passa a ser só o nome e a cara dessa pessoa. A angústia disso, do momento em que o nome da rua volta às placas, voltam os revisores do comboio a pedir o bilhete até ao término da linha e os autocarros aos solavancos mal sobem a rua com tanta gente apertada a pesar nas pernas do autocarro.
Os homens andam assim. Cheios de tanto frio e humidade por dentro que os ossos moem como pedaços de madeira a empapar. Andamos todos tão cheios de culpas e pecados, saudades e amores que não percebo como não somos todos um inverno continuo.
Deixem-nos chorar com os dedos na boca, o ranho a escorrer pelos lábios e as palavras a enlamear. Os nossos ombros já agradeciam o descanso e, quem sabe, com essa nossa sinceridade humilde não nasceria um pequeno sol, porque as crianças são estrelas sem planeta e são Verão e Primavera, aquelas estações nas quais todas as chuvas acabam em arco-íris.

8 de novembro de 2009

Goma

No dia seguinte a estar contigo não sinto a tua falta. Lembro-me de ti só raríssimas vezes e mesmo nessas vens-me à memória porque aquela cicatriz que me fizeste no lábio ainda cá está. Aquela que causamos por estar a brincar com uma goma, tu a morder um lado e eu outro, achaste que a partilha do urso, garrafa ou ovo estrelado -já não me lembro- não era justa e resolveste reclamar mais um pedaço. E nesse dia que me mordeste sangrei a rir sem imaginar que me ias tirar pedaços cada vez maiores de doçura até chegar ao azedume que acabou connosco.
Mas pronto, como estava a dizer, nesses dias seguintes a te ver, mesmo naquela nesga de tempo ao saíres para o café que bebes todos os dias às 17:15 e durante todo o caminho te observo enquanto dói cá dentro a vontade de te acompanhar. Mesmo nessa altura, não sinto a tua falta.
Mas por vezes passam mais dias e aí dou por mim a falar de ti a todos. Como se fosses um filme que ninguém podia perder ou uma música que todos têm de ouvir com urgência. Como se alguém partilhasse da minha paixão inexplicável. Um hobby exclusivo intransmissível.
O que não te disse quando te liguei foi que soube que estava a perder as estribeiras quando te vi numa fatia de fiambre. Fazia já 5 dias que não via os teus passos pequenos e cautelosos a calcar a calçada nesses saltinhos cómicos que dás quando usas saltos. Sabes as pessoas que vêem santos nas sombras e nas manchas de humidade? Lembras-te como tinhas um nome caro para essas coisas que queremos tanto ver que vemos mesmo numa coisa totalmente diferente? Pois isso aconteceu-me contigo e fiambre. Imagina o ridículo.
E eu a olhar para a sande, que como sempre às 17 e a pensar que pronto.
Vá. Já chega.
Quando te liguei só te disse
- Quero que saibas que vou mudar de emprego. Apareceu uma oportunidade e vou agarrá-la. Só tu me mantinhas aqui e pronto. Passou sabes... Se precisares de mim diz mas eu já não preciso de ti.
e tu, numa confusão de criança abandonada por um animal doméstico que julgamos vinculado por uma trela emocional que previne fugas
- Tem calma. Vais para onde? Eu ia-te ligar para irmos jantar. Resumir as coisas. Sei lá... ver se podíamos reatar o que ficou por resolver (sempre foste tão dramática a falar)
- Minha goma. Vai tudo ficar bem. Faltam-te 10 minutos para o café das dezassete e quinze. A única diferença é não teres ninguém a ver-te da janela. Atravessa sempre na passadeira e tem cuidado porque já não tomo conta de ti. Mas acredita. Se eu estou bem tu também vais ficar.
Choras e não entendo o que dizes. Quem chora tem menos doçura e talvez por isso tanta dificuldade tive, após ter chegado ao destino, a encontrar o local certo da minha cicatriz. Ao sorrir a cicatriz desaparece e a doçura volta.
Logo a mim, que antes de vir embora me precavi com um quilo de doçarias sortidas para as quais agora não tenho destino nem necessidade.

1 de novembro de 2009

Três em cinco

Futebol. Em campo quatro cheerleaders, nos momentos que antecedem o jogo esperado, a fazer publicidade a uma marca qualquer. Urros e assobios. Sintomas da finda tradição masculina do futebol, um rasgo de liberdade num local que, felizmente, se democratizou e embelezou com aquelas que dantes ficavam em casa ou no carro a tricotar.
Ao meu lado um senhor mais velho, companheiro de lugar já há uns anos e de quem, ainda assim, nada sei além do nome, que gosta de casacos de couro e aperta com força a mão ao chegar, exclama desalentado
- Só uma delas vale mais do que nós todos juntos
isto dito de forma triste como se de repente descobrisse que estava orfão, tinha falido e a mulher o tinha deixado por isso mesmo.
Eu a pensar na tal fatal frase, porque temos de ser humildes perante pessoas mais velhas, e em que medida ela se aplicaria a mim e à minha experiência de pessoa com idade para ser filho dele.
Descubro que a estatística e a memória não me deixam ficar mal. Três em cinco é a conta. Das cinco mulheres que conheci, três não merecia e, lá está, fiquei orfão, fali e elas perceberam que temos sempre de procurar pessoas que não merecemos e que nos melhorem por comparação e aprendizagem.
Com a primeira aprendi quantos centímetros de pele escondidos as mulheres têm ao tomar banho (não lhe merecia o corpo), com a segunda aprendi que também o cabelo é erógeno e ainda que os olhos podem chorar ao fim de um beijo (não lhe merecia a leveza) e com a terceira aprendi o segredo -que não partilho- da escolha das maçãs verdes mais doces, da importância dos abraços como expressão pura de carinho e amor e ainda como é possível sorrir com o olhar mesmo tendo os olhos fechados (a esta não lhe merecia o corpo, nem a leveza, nem a magia).
Assim vai sendo o tempo, no estádio exultaram mais algum tempo com o corpo das dançarinas que não merecemos enquanto na minha cabeça ainda exultava em solidão, com a memória dos banhos aromáticos, das danças de cabelos embrenhados e dos abraços de corpo inteiro a sorrir de olhos fechados. Assim vai a luta pelo merecimento.