27 de dezembro de 2009

Década

Não foi fácil passar do ano 2000. Sentir a responsabilidade de passar aquele marco histórico, todo o legado de preocupações e superstições que anunciavam o fim do mundo e depois, numa enorme apoteose de coisa nenhuma nada aconteceu. Fechou-se o século numa noite de chuva normalíssima sem sequer ter o estalo de um foguete.
Mas para quem, como eu, nasceu a meio ou na metade final dos anos oitenta esta noite anónima em que o mundo não acabou haveria de ser o início da vida como ela deve ser.
Esta década foi a que mais nos ensinou. Foi aquela na qual mais choramos e sofremos. Mais amamos e aprendemos. Ao longo destes anos despedimo-nos sem saudade da adolescência e a responsabilidade fria da vida adulta chegou sem aviso. Durante todo esse tempo fomos descobertos e perdidos. Continuamos a estudar ou fomos trabalhar. Temos filhos e uma casa ou então uma dor que não vai embora por mais pessoas que deitemos na cama.
Se calhar até começamos a ter um pouco de saudades da adolescência.
Além disso vamos ter muitas histórias para contar sobre como o mundo mudou durante este tempo em que crescíamos. Nós, que supostamente seríamos uma geração sem causas, vimos terrorismo, guerra, crise, desemprego e tantas outras infelicidades públicas e privadas serem alinhadas para resolução. Nós somos os adultos. Havemos de resolver tudo.
Acima disto tudo, da gente que morreu e não devia e das lágrimas que caíram sobre quem nem conhecíamos fica a memória de uma década em que aprendemos a amar. A bem ou a mal abandonamos as paixões adolescentes e abraçamos o agridoce dos grandes amores adultos. Aqueles que nos marcam de forma como nunca outro antes marcou. Amores que se correrem bem podem demorar várias décadas a saborear ou se correm mal podem levar uma vida inteira a esquecer.
Depois do grande 2000 o mais importante que fiz foi aprender a amar. Foi dar uns abraços, uns beijos, uns passeios e acordar sempre numa cama quente ao lado da pessoa com quem me tinha deitado na noite anterior. Foram os sorrisos e as mãos enlaçadas. Foram as fotografias, as escadas e as calçadas. Os cafés e restaurantes com velas. Os animais a comerem-me da mão.
Foram as saudades de tudo.
Aprendi que só choramos pelas coisas que um dia nos fizeram sorrir e na próxima década, que está ali a chamar-nos, só desejo coleccionar sorrisos que retardem as saudades o tempo suficiente para que a chuva de lágrimas não caia, fria, em cima da fronha da minha almofada, contigo a ver.

20 de dezembro de 2009

Fala-me em reticências

Tinha ideia que o teu cabelo tinha a espessura de uma mina 0.5 de lapiseira. Tinha isso como certo até te pentear, naquela varanda gótica para o rio, e perceber que era ainda mais fino porque ao desenrolar nos meus dedos parecia até que cortava como papel.
Do lado de lá do rio um palacete com jardim, tudo em ruína. Sabe-se logo que uma casa está para morrer quando do seu jardim consta mais verde selvagem do que o colorido cuidado das flores.
-Um dia monto ali uma escola. Assim um colégio barato que só cobre o necessário. Todos os meses fazia as contas e cobrava o que fosse preciso. Eu ensinava Inglês e recebia 500 euros. Se fosse preciso vivia na torre ali de cima e ia parecer que dava aulas na minha sala. Às vezes tocava-se piano...
e sorrias, como sempre fazias quando acabavas uma frase com reticências.
Eu, que até então me tentava inserir na tua vida lentamente, abri de rompante a porta da tua sala de aulas para te tentar impressionar
-E eu? Posso ser o professor de educação física?
tu com um sorriso contrariado disseste
-Sim claro.
na realidade elogiava-te demasiado e de repente a nossa relação era um teatrinho romântico a tentar estrear numa cidade industrial. Eu o palhaço poeta, tu a filha do patrão emparedada na tua crença de ser impossível um dia seres feliz.
Depois do fim do sonho e da continuação da nossa solidão devias ter continuado a ir ao nosso café. Lembras-te do Senhor Mendes? Cavalheiro à antiga que era mais simpático contigo quando eu não estava? Mesmo depois do fim ele merecia que de vez em quando lá fosses pedir um bolo para levar só porque ele embrulharia o pacote com melhores dobras e um laço de algodão que no final recebia a frase naquela voz a pedir desculpa por existir
-Aqui está menina. Bom proveito e obrigado.
Depois do fim eu continuei a ir lá e tanto eu como ele empedrados com a tua ausência à mesa. No trato frio das transacções e quando peço um lanche como tu sempre pedias ele não mo embrulha com fio
-Um euro e vinte se faz favor, obrigado.
No ar a ausência das tuas reticências fazem com que os pontos finais caiam estatelados no meio das nossas frases. O que fica por dizer é relativo a ti e por isso tanto melhor que fique guardado num vácuo da vergonha e receio.
Esta semana, a faltar tão pouco para o Natal, eu agradeci-lhe em teu nome dizendo que tu lhe mandas cumprimentos. Os olhos a sorrirem, milhões de minutos de rugas absorvidos e a voz naquele tom que ele guardava para ti quando eu não estava
-Desejo um santo Natal a si e à sua menina...

13 de dezembro de 2009

Jackpot

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Quis Deus, ou sabe-se lá o quê, que o meu maior sonho fosses tu e que tivesse de te conhecer quando já tens obra feita com outra pessoa. Que merda.
A sorte dele é que não me sai o totoloto (sou antiquado, que queres...) para relançar a minha vida. Arranjava dois tipos para o matar de forma aparentemente acidental. Dois gajos caros, nada daqueles ucranianos certinhos que iriam à polícia e me lixavam o esquema, um assalto simulado ou uma ligação do alternador ao depósito de gasolina do carro. Uma coisa simples e eficaz.
Depois aparecia eu, feito psiquiatra amigo conhecido por coincidência, e do meu apoio e amizade surgiria o amor. Um dia até me dirias que grande era o teu arrependimento por não teres esperado por mim. Que o teu marido era bom homem mas não era nem tão divertido nem tão amável como eu. Não te dava o lado direito dos passeios nem te puxava a cadeira nos restaurantes. Tu, no auge da tua frescura e ele que mal te tocava concentrado no trabalho que punha comer na mesa mas que tingia os lençóis de tédio. Depois davas-te a mim, para curar feridas e descobrir o que um velho grisalho (todo eu cinza e preto) tinha para te dar no início da curva descendente da frescura do teu corpo.
Eu a amar-te sempre, mesmo quando estivesses tão feia como a minha vizinha da frente que ainda suspira pelo marido morto em Angola. Eu imortal contigo a suspirar pela minha boa saúde e delicadeza de cavalheiro a causar inveja às amigas que enquanto me ausento da mesa te dizem
-Já não se fazem homens assim, que sorte tu tens
e tu a sorrir orgulhosa e feliz pelo destino te ter posto no meu caminho. Contente por o teu emprego te obrigar a apanhar o meu autocarro todas as manhãs, quando tomaste banho há meia hora e às vezes ainda o cabelo pinga a escorrer pelos ombros a tornar a camisa branca translúcida.
A sorte do teu marido é que não me sai nada. A sorte do teu marido é que tu não prestas atenção a motoristas de autocarro mais velhos, vestidos com a farda regulamentar.
A verdadeira sorte do teu marido é que na cabeça de um tipo com o nono ano, com um coração manchado, só faz sentido roubar a mulher ao seu marido através da morte e do dinheiro. Como nos filmes, esses sonhos em película, que só roçam superficialmente no limiar da imaginação castrando-nos de possibilidades de ser alguém.

6 de dezembro de 2009

Verão

-Eu não preciso disto sabe, tenho filhos que me fazem companhia e ligam quase todos os dias.
Diz-me o excêntrico da estação, não o chamo louco porque chamar louco dá tanto azar como a inveja e ainda acabo como ele. Falta muito pouco para as 6 da madrugada e já o Sr. Jorge observa, sorridente e elegante com o seu blazer aos quadrados e cigarro na boca
-Desde que os espanhóis lançaram estes cigarros mais baratos que posso fumar um maço e meio por dia.
o comboio que sai em direcção à ponte ainda se vê ao longe e Jorge, porque o Sr. o faz mais velho, justifica-se
-Venho cá todos os dias, todo o dia, durante a Primavera e o Verão ver as pessoas a ir e vir. Sabe que nós somos como as aves. Emigramos para sítios mais quentes. No Inverno deixo de vir porque só as pessoas tristes não emigram e ficam aqui a lamber a amargura das bochechas e a comer cigarros. Eu tenho desculpa, sou velho, não tenho ossos para ir agora para o Brasil ou África. Imagina-me a assobiar às catraias com esta idade?
por acaso imagino mas não lho digo, o Jorge tem aquele aspecto de tipo que não morre, um daqueles velhotes que com 90 anos se levanta cedo e toma um banho de água fria só porque acha que isso lhe faz bem, com a ocasional bebedeira e a derreter cigarros como as massagistas derretem tensões.
-Sabe. A minha mulher emigrou, a minha garça, tão bela que ela era. Um dia quando o inverno estava a começar ela foi atrás de uns pássaros que imigravam para sul. Imagina o que era na altura eu namorar com uma mulher da televisão? Ninguém via os programas de animais mas ainda assim eu me gabava de ter casado com uma mulher da televisão. Mas pronto. Ela foi e não voltou, na altura as notícias chegavam tarde e demorei quase meio ano a saber que ela tinha conhecido um ricaço qualquer, dono de um zoo, amor, casamento e um ninho espaçoso e quente todo o ano. Eu fiquei aqui a tomar conta do nosso ninho, ao qual ela não voltou, e às nossas crias que cresceram belas como a mãe e fumadoras como o pai. Ligam-me quase todos os dias, sabia? Desde o casamento que venho cá, ver as pessoas sorrir e chorar. Os comboios que chegam e vão. Não há sitio mais feliz que uma estação de comboios mesmo quando de ambos os lados dos vidros duas pessoas choram. O choro são saudades e só temos saudades das pessoas que regressam um dia. Portanto não chore, vá, deixe-a ir. Fume um comigo e veja lá esta foto do meu mais velho, maquinista do metro.

29 de novembro de 2009

Inverno

A casa não se vende, faz daqui a três dias seis meses que está à venda e para já, da mão cheia de visitas ainda nenhuma deu em sucesso. Casais jovens e felizes inspeccionam as divisões, observam as vistas e testam as lâmpadas. Ficam encantados e julgam que ali é o sítio onde vão fazer toda a vida. Já pensam até num catraio ainda sem nome para ocupar o quarto que transforma o apartamento em T2. Pensam ser aqui o seu local preferido até eu dizer
-O único inconveniente é o frio e a humidade
e o tal casal já a preparar a ronda negocial com um desconto que compense o inconveniente de ter frio e ter de pintar o quarto todos os anos. Então digo
-Estas faixas têm algumas formigas que vêm do soalho da cozinha, cuidado com os pés porque a madeira é muito frágil e parte. Depois ficam com formigas por todo o lado.
Aí o casal já murchou, o bebé vai ter de esperar mais um bocado e partem a dizer que depois dão uma resposta. E nunca mais ligam.
Hoje, lá se vai a minha jogada, tu também vens ajudar na visita, desconfiada de que esta casa tão luminosa e barata não se tenha já vendido por minha culpa. Pensas que eu saboto as visitas e então dizes-me
-Faz de conta que está tudo bem entre nós e que vamos mudar de casa porque me apetece.
E quando te respondo
-Não tenho dificuldade nenhuma em parecer feliz contigo. Isso é-me natural.
tu dizes sem olhar
-Não sejas parvo.
Com o temporal desta noite, neste inverno tardio e irado, a placa que dizia VENDE-SE desapareceu, levantou voo e aterrou num local qualquer.
-Foste tu que tiraste o vende-se?
-Claro que não. Foi o temporal desta noite. Se fosse romântico diria que é um sinal dos céus que ela tenha desaparecido e que alguém nos está a pedir que voltemos a mobilar a casa e ocupar o dois do T2.
e tu, num momento pouco suspenso, a tua resposta fácil e rápida, preparada porque sabes que as minhas técnicas de sedução são todas tão simplórias e previsíveis
-Não sejas parvo.
Ao limpar contigo a casa agora ampla com um vazio claro e anónimo relembro, quando tu e eu, jovens e felizes, passeamos pelos corredores ainda empoeirados de cimento e imaginamos como colorir à mão o quarto da Bia.
Entretanto e por ordem, fomos felizes e amamo-nos, nasceu a Bia como esperado, compramos um gato e um periquito, tu começaste a fumar e a trazer um after shave no cachecol que não era meu e um dia nem tu nem bia nem gato. Ficou na mesinha da entrada um papel de despedida, um impresso para o divórcio e, na varanda, um piriquito que não canta há mais de quatro meses.
A separação de bens prevê a venda do imóvel e só aí o divórcio tem seguimento. Seguirá o divórcio e a tua vida com um gajo que não sei quem é mas cheira bem e não deve ter ideias românticas ou periquitos afónicos. Precisas de um gajo sem drama e poesia para te chatear. Ele fica lá para um canto a cheirar bem e tu a educar a nossa Bia a chamar-lhe pai.
A placa VENDE-SE caiu e lá fora uma chuvada biblica a arrastar caixotes rua abaixo, ainda assim um casal amoroso, tu e eu com menos uns dez anos, encontrou a casa e aparece a preto e branco no video porteiro. Abres a porta do prédio, viras-te para mim, os olhos decididos mas caídos da idade e dizes
-Hoje a casa fica vendida e a nossa vida continua.

22 de novembro de 2009

Primavera

Acho que a terra, aqui, secou. Aqui e no meu caminho até ao trabalho. Na terra morta, tal como num esgoto estéril, só sobrevivem as ervas daninhas como se fossem ratazanas quietas movidas a vento e fome. Das nossas árvores, nada, até as heras encontraram melhores troncos para sugar.
Passou já tempo suficiente para árvores e plantas crescerem, na borda daquele caminho que dantes percorrias comigo, e para as frutas dessas árvores e dessas plantas crescerem, amadurecerem e caírem. Mas as coisas são assim mesmo, tivesse tudo corrido de feição, com pouca geada e mais uns tantos dias de sol e já nós tínhamos tempo de sobra para pôr um fruto dentro de ti, deixá-lo crescer e amadurecer e passados nove meses cair de ti minha pequena árvore. Não bastou a paciência para nem mais um dia ou dois, quanto mais para nove meses e agora os sorrisos aparecem-me de semanas em semanas.
Como ia dizendo, passei naquele caminho onde religiosamente distribuíamos os caroços de frutas que comíamos e sementes de flores descartadas pelas floristas, na esperança de que, sei lá, qualquer coisa e no dia seguinte aquilo fosse um pomar com uma estrada no meio onde só cabiam dois pares de pés apertados pelas mãos dadas. O terceiro par podia ir ao colo como uma pêra ou rente ao chão como uma borboleta.
Agora acredita em mim porque o vi, nada cresce na lama. Do nosso caminho tão delicado fizeram um estaleiro de obra. E não, não foi o nosso éden que se tornou num destino turístico que justifica um chalé cuidado, foi sim aquele meio quilómetro de terra que ganhou um preço por metro quadrado e foi vendido às peças, despedaçado e desossado como uma carcaça onde irão um dia surgir moradias espaçosas tão estéreis como o chão que envenenaram e as famílias lá dentro a viver uma vida de flores amarelas, fruta enlatada e pão seco sob uma maldição shakesperiana que os parta todos.
Podias vir comigo lá um dia, levantávamos alguns paralelos da calçada e plantávamos uma mão cheia de pevides de melão e quem sabe, qualquer coisa e no dia seguinte nós os dois a levantar a maldição a uma das moradias com tulipas no jardim, bananas na travessa e uma borboleta rente ao chão com os teus olhos a saltitar no relvado.

15 de novembro de 2009

Outono

Não é fácil ser homem. Viver num Outono permanente. Esta estranha espécie de peso amargo nos ombros. Estes segredos dolentes como o frio inesperado naqueles dias de folhas estaladiças no chão em que a roupa de Verão deixa de agasalhar e proteger.
As mulheres serão de Vénus e os homens de Marte, nem discuto essa teoria, mas sei, com toda a certeza, que os homens são Outono e as mulheres Inverno. A tristeza feminina é frontal e torrencial. Tem uns dias brandos mas depois vêem em conjunto uns tantos dias de tormenta em que só em casa se está a salvo. Os homens não chovem. Há aquele nariz pingado e os pés frios. Há as folhas ora secas e barulhentas ora húmidas e escorregadias no chão. Há a ameaça de mais humidade e mais frio que nunca se confirma.
Os homens têm em si transições tristes, pores do sol com nuvens carregadas e pés revestidos a sapatilhas molhadas pela chuva. Carregamos connosco as saudades de casa, a ver na internet vídeos da nossa cidade com a fé no sinal de banda larga que estreita o contacto com as memórias só um pequeno soluço de cada vez. Andam-nos no corpo as saudades da mulher e dos filhos, namoradas, ex namoradas e amores por cumprir.
Saudades do tempo em que as ruas eram nossas e em vez de terem um nome tinham uma pessoa. Aqueles trajectos aos quais nunca prestamos atenção até que surge a paixão por alguém que mora naquela rua. O nome da rua, o destino da linha e o número do autocarro passa a ser só o nome e a cara dessa pessoa. A angústia disso, do momento em que o nome da rua volta às placas, voltam os revisores do comboio a pedir o bilhete até ao término da linha e os autocarros aos solavancos mal sobem a rua com tanta gente apertada a pesar nas pernas do autocarro.
Os homens andam assim. Cheios de tanto frio e humidade por dentro que os ossos moem como pedaços de madeira a empapar. Andamos todos tão cheios de culpas e pecados, saudades e amores que não percebo como não somos todos um inverno continuo.
Deixem-nos chorar com os dedos na boca, o ranho a escorrer pelos lábios e as palavras a enlamear. Os nossos ombros já agradeciam o descanso e, quem sabe, com essa nossa sinceridade humilde não nasceria um pequeno sol, porque as crianças são estrelas sem planeta e são Verão e Primavera, aquelas estações nas quais todas as chuvas acabam em arco-íris.

8 de novembro de 2009

Goma

No dia seguinte a estar contigo não sinto a tua falta. Lembro-me de ti só raríssimas vezes e mesmo nessas vens-me à memória porque aquela cicatriz que me fizeste no lábio ainda cá está. Aquela que causamos por estar a brincar com uma goma, tu a morder um lado e eu outro, achaste que a partilha do urso, garrafa ou ovo estrelado -já não me lembro- não era justa e resolveste reclamar mais um pedaço. E nesse dia que me mordeste sangrei a rir sem imaginar que me ias tirar pedaços cada vez maiores de doçura até chegar ao azedume que acabou connosco.
Mas pronto, como estava a dizer, nesses dias seguintes a te ver, mesmo naquela nesga de tempo ao saíres para o café que bebes todos os dias às 17:15 e durante todo o caminho te observo enquanto dói cá dentro a vontade de te acompanhar. Mesmo nessa altura, não sinto a tua falta.
Mas por vezes passam mais dias e aí dou por mim a falar de ti a todos. Como se fosses um filme que ninguém podia perder ou uma música que todos têm de ouvir com urgência. Como se alguém partilhasse da minha paixão inexplicável. Um hobby exclusivo intransmissível.
O que não te disse quando te liguei foi que soube que estava a perder as estribeiras quando te vi numa fatia de fiambre. Fazia já 5 dias que não via os teus passos pequenos e cautelosos a calcar a calçada nesses saltinhos cómicos que dás quando usas saltos. Sabes as pessoas que vêem santos nas sombras e nas manchas de humidade? Lembras-te como tinhas um nome caro para essas coisas que queremos tanto ver que vemos mesmo numa coisa totalmente diferente? Pois isso aconteceu-me contigo e fiambre. Imagina o ridículo.
E eu a olhar para a sande, que como sempre às 17 e a pensar que pronto.
Vá. Já chega.
Quando te liguei só te disse
- Quero que saibas que vou mudar de emprego. Apareceu uma oportunidade e vou agarrá-la. Só tu me mantinhas aqui e pronto. Passou sabes... Se precisares de mim diz mas eu já não preciso de ti.
e tu, numa confusão de criança abandonada por um animal doméstico que julgamos vinculado por uma trela emocional que previne fugas
- Tem calma. Vais para onde? Eu ia-te ligar para irmos jantar. Resumir as coisas. Sei lá... ver se podíamos reatar o que ficou por resolver (sempre foste tão dramática a falar)
- Minha goma. Vai tudo ficar bem. Faltam-te 10 minutos para o café das dezassete e quinze. A única diferença é não teres ninguém a ver-te da janela. Atravessa sempre na passadeira e tem cuidado porque já não tomo conta de ti. Mas acredita. Se eu estou bem tu também vais ficar.
Choras e não entendo o que dizes. Quem chora tem menos doçura e talvez por isso tanta dificuldade tive, após ter chegado ao destino, a encontrar o local certo da minha cicatriz. Ao sorrir a cicatriz desaparece e a doçura volta.
Logo a mim, que antes de vir embora me precavi com um quilo de doçarias sortidas para as quais agora não tenho destino nem necessidade.

1 de novembro de 2009

Três em cinco

Futebol. Em campo quatro cheerleaders, nos momentos que antecedem o jogo esperado, a fazer publicidade a uma marca qualquer. Urros e assobios. Sintomas da finda tradição masculina do futebol, um rasgo de liberdade num local que, felizmente, se democratizou e embelezou com aquelas que dantes ficavam em casa ou no carro a tricotar.
Ao meu lado um senhor mais velho, companheiro de lugar já há uns anos e de quem, ainda assim, nada sei além do nome, que gosta de casacos de couro e aperta com força a mão ao chegar, exclama desalentado
- Só uma delas vale mais do que nós todos juntos
isto dito de forma triste como se de repente descobrisse que estava orfão, tinha falido e a mulher o tinha deixado por isso mesmo.
Eu a pensar na tal fatal frase, porque temos de ser humildes perante pessoas mais velhas, e em que medida ela se aplicaria a mim e à minha experiência de pessoa com idade para ser filho dele.
Descubro que a estatística e a memória não me deixam ficar mal. Três em cinco é a conta. Das cinco mulheres que conheci, três não merecia e, lá está, fiquei orfão, fali e elas perceberam que temos sempre de procurar pessoas que não merecemos e que nos melhorem por comparação e aprendizagem.
Com a primeira aprendi quantos centímetros de pele escondidos as mulheres têm ao tomar banho (não lhe merecia o corpo), com a segunda aprendi que também o cabelo é erógeno e ainda que os olhos podem chorar ao fim de um beijo (não lhe merecia a leveza) e com a terceira aprendi o segredo -que não partilho- da escolha das maçãs verdes mais doces, da importância dos abraços como expressão pura de carinho e amor e ainda como é possível sorrir com o olhar mesmo tendo os olhos fechados (a esta não lhe merecia o corpo, nem a leveza, nem a magia).
Assim vai sendo o tempo, no estádio exultaram mais algum tempo com o corpo das dançarinas que não merecemos enquanto na minha cabeça ainda exultava em solidão, com a memória dos banhos aromáticos, das danças de cabelos embrenhados e dos abraços de corpo inteiro a sorrir de olhos fechados. Assim vai a luta pelo merecimento.

25 de outubro de 2009

Naturalmente

As coisas que fazemos bem sabemos como as fazer sem olhar. Fazemos-las até mesmo sem pensar nisso. Não pensamos em respirar, deixar bater o coração ou até em andar. Queremos que algo aconteça e ele aparece feito.
Pergunta a um pianista ou guitarrista se pensam que têm de atingir a nota tal que está na pauta para o fazer acontecer. Eles dirão que não, no início talvez mas agora já é automático e fácil. Tal como respirar.
Para mim é automático encontrar as teclas correctas do computador e conduzir. Essas coisas acontecem dentro daquela zona do meu cérebro que guarda as tarefas repetitivas e que vão sendo refinadas. Claro que também automático em mim é amar-te.
Acontece porque sim e sem pensar. Sem sequer pensar para onde direccionar o coração ele virou-se sozinho para o teu sentido e por lá segue, sem se arrepender da estrada percorrida e sem sequer consultar mapas, placas ou GPS's.
E como é automático, como é tão meu como respirar, sou muito bom nisso. Sei como te tratar e o que fazer para sorrires. Com naturalidade, como se viesses com livro de instruções e seguisse sempre o capítulo mágico que aborda o que fazer quando tudo o resto falha. Aquelas soluções incríveis que tudo resolvem. Que tornam tudo estupidamente fácil e que põem o resto dos mortais a perguntar
- Como fizeste isso?
e eu a sorrir com a naturalidade com que negoceio o difícil estacionamento na tua rua.
Toco-te como nas teclas do computador e guio-te como nas estradas à noite e à chuva. Respiro-te.
Amo-te.

18 de outubro de 2009

A quem tudo se perdoa

Há pouco tempo, em discussão salutar com uma amiga, dizia-lhe que se Deus existe como bóia de salvação da gente desesperada (e ainda ontem foi dia mundial da depressão) também acreditava em Deus porque assim é uma ideia auxiliadora e não uma entidade salvadora. Ideia essa de que não preciso mas à qual reconheço utilidade.
Se há na terra mostras de divindade será naqueles objectos ou pessoas que nos causam o Stendhal Effect. Este efeito foi relatado pelo escritor francês Stendhal aquando da sua visita a Florença e durante a qual o mesmo sentiu aceleração do batimento cardíaco, tonturas e até alucinações quando estava perante uma peça de arte de excepcional beleza ou uma grande quantidade de obras num só local. Desde o início do século XIX, quando em 1817 a descrição apareceu num livro de Stendhal, até aos finais do século XX (em 1982 foi reportado o primeiro caso oficial) milhares de casos surgiram. Entretanto também Paris foi associada a este fenómeno por causar os mesmos sintomas no Louvre e nos monumentos emblemáticos.
É aqui que vejo o paralelo com aparições religiosas.
Alucinações relacionadas com um sentimento que não compreendemos de onde vem, geralmente provocado por uma peça de arte que não sabemos descrever são o de mais religioso podemos experienciar. É fé que vem de dentro.
E a gente é mastigada pelos deuses e vigarizada por falsos profetas e mesmo assim continua a construir-lhes obeliscos e menires de formas e valências diferentes. Mesmo assim perdoa as falhas justificando com as suas próprias que supostamente justificam o castigo deles. Aos deuses tudo se perdoa.
De volta aos artistas, os meus únicos deuses porque já Nietzsche dizia só conceber acreditar num Deus que dançasse, são eles que movimentam paixões e fanatismos semi-religiosos. Só eles têm a capacidade de nos deixar ficar mal e/ou cair em desgraça e nós ali a perdoar e acreditar. A defender perante quem ataca a legitimidade da devoção.
Também os artistas parecem ter características mártires de cristos. Penso de imediato em Maradona, Chet Baker, Elis Regina e uns tantos pintores envenenados pelo chumbo das tintas dos pincéis que afiavam com os lábios. Gente danificada pela sua arte e que agora serve de estudo de caso para que os artistas actuais, coitados, não danificados pela arte mas pela sua asfixiante falta de talento, justifiquem as depressõezinhas e demais doidois mentais.
No filme "Maradona by Kusturica" o Deus dos relvados questiona para o ar o que teria sido dele não tivesse havido a cocaína.
Eu respondo.
Teria sido o mesmo. Mas acrescia ao conhecimento mundial informal de ter sido o melhor jogador de todos os tempos o reconhecimento formal das instituições em vez do simpático e bem comportado Pelé.
E um Deus é isto. Falha por sistema mas é adorado e ouvido com atenção. Um magnetismo que move tantas montanhas como milhares de pessoas de joelhos numa catedral. Como traças a ver a luz lá vamos nós embater com o nariz no vidro.
Esta semana Maradona disse relativamente aos seus críticos, pedindo desculpa às senhoras presentes na sala, que "a" chupem e que "a" sigam chupando.
Aos Deuses tudo se perdoa.

11 de outubro de 2009

O Mecânico Constante

Os tradutores enganam-se muitas vezes. Coitados. Tenho genuína estima e pena por eles que andam consumidos de lado para lado a ganhar úlceras nervosas e hérnias de esforço à procura de tradução para uma frase que em inglês soa tão bem mas em português não sabe a nada.
Assim aconteceu com o filme The Constant Gardener traduzido para português como O Fiel Jardineiro. A confusão foi que o tradutor viu o filme e achou que o leitmotiv (olha cá está uma palavra intraduzível) era a fidelidade de um homem em ir até ao fundo de uma questão pela honra da memória da sua amada. Confusão normal e compreensível mas, na minha humilde opinião, errada.
O elemento central do filme é o fascínio e devoção masculina pela manutenção. A forma como este "jardineiro" paciente se rodeia das suas plantas e trata delas tem tanto de devotamente religioso como uma peregrinação.
Qualquer homem poderá testemunhar da alegria que é tomar conta das suas coisas. Há quase tanto prazer no mudar o óleo do motor ou as pastilhas de travão de um carro como conduzi-lo. Só dessa forma sabemos que não andamos a ser enganados por um placebo que alguém disfarçou e nos impingiu.
Somos assim nós homens quando as nossas ninfas privadas surgem depois do banho, ainda dentro de toalhas do tamanho de casulos gigantescos, e nos pedem que espalhemos um creme hidratante ou façamos uma massagem naquele sítio qualquer que doi. Há muito de egoísta nisto porque não só estamos a cuidar do que amamos usufruir como usufruimos durante o cuidado. Nós que tantas vezes temos vontade de parar enquanto as amamos só para ver, assim um intervalo contemplativo para absorver a beleza inatingível de cada suavidade feminina, e não podemos, com medo de sermos ridículos ao ponto de mais tarde entre as amigas haver o desabafo dessa coisa estranha que fizemos numa noite que foi parar a contemplar a estátua viva que ali amávamos.
Ainda no Fiel Jardineiro há o agradecimento da personagem masculina à feminina pela maravilhosa dádiva de esta ter feito amor com ele. Raios, nós somos tão ridículos...

4 de outubro de 2009

Faz-me lá a vontade

Não te preocupes com a água salgada das lágrimas amor. Não vai ser a falta delas que te vai fazer desidratar nem o sal enlouquecer. Deixa-as cair e não as limpes; hidratam o rosto e dão-lhe um brilho fugaz como a luz do luar sobre uma janela. Se quiseres bebe-as, tal como te disse não te enlouquecem como aos náufragos que por cada golada de água do mar se sentem ainda mais sedentos. Sabes, percebi já há uns anos que as lágrimas só são amargas se a mágoa que a pessoa deixa for maior do que a doçura que foi espalhando. Podemos estar descansados não achas?
Vá, deixa que as lágrimas corram, não as aguentes que os olhos incham e ardem, ficam vermelhos e toda a gente sabe que tentaste não chorar e não conseguiste. O mundo não acaba hoje acredita. Vamos sempre ter os nossos passeios e cozinhados. Vamos conseguir lembrar sempre a quantidade de açúcar que cada um gostava no café e quanto queijo gostávamos ambos no esparguete. Vamos poder ouvir os nossos tangos, cada um em sua casa, com nova pista de dança improvisada e quiçá um novo par para ambos, à frente do aquecedor amarelecido de incandescência sem uma única lágrima.
Não chores amor que eu vou sempre lembrar como estava o teu cabelo da última vez e reparar que o tens diferente. Lembrarei sempre também os vestidos que o teu guarda-vestidos guarda e dizer-te como é bonito e te cai bem o cinza curto que um dia vais ganhar coragem de comprar e vestir.
Pronto, está bem, chora lá um bocadinho vá. As lágrimas não são más como as pessoas as julgam. Entala a voz numa dúzia delas. Se não por mais nada, pelo menos, para te livrares da dor que te deixo ao partir.
Sei lá... Chora para me mostrar que te custa eu virar costas. Chora por favor. Uma lágrima triste que cai ao chão e seca à frente do aquecedor.
Caramba.
Chora, diz que me queres e que podíamos tentar de novo porque só assim eu sei que há doçura entre nós e que não estavas ansiosa pela minha partida. Eu parto na mesma claro mas ainda assim gostava de saber que tenho lugar na tua vida.
Pronto não chores, tudo bem.
Eu pego na minha tralha, despeço-me do canário que compramos juntos e que não canta para não se despedir de mim. Pego em mim e trago-me para fora de tua casa e tu podes fechar a porta com a naturalidade de quem julga que volto no dia seguinte.
Mas não volto e fico a pensar a partir de que distância a madeira da tua porta consegue isolar o som do meu choro.

27 de setembro de 2009

Olá

Num mundo perfeito (pasmam-me as vezes que começo frases assim) eramos todos familiares ou amigos. Entravamos num café e sentavamos-nos numa mesa a tomar um copo com uma total estranha que, neste mundo perfeito, não era estranha durante muito mais tempo. Ficavamos ali a ouvir as coisas aborrecidas que a tornam uma pessoa interessant. As doenças do pai e da mãe, os amores e desamores, o que faz para ganhar a vida. Se gosta do que faz...
Nesse mundo perfeito um homem poderia ser simpático para uma mulher. Poderia também abordá-la na rua e dizer
- Que belo cabelo tu tens.
sem que a tal moça do belo cabelo achasse que eramos uns pervertidos que na realidade estavamos a elogiar-lhe as mamas. No tal mundo, os autocarros eram reuniões de familia onde todas as pessoas ouviam e falavam como se se conhecessem há anos.
Nesse mundo, em vez de te sentares lá ao fundo do comboio com os teus phones a debitar metal como um repelente de insectos anti-conversa esperavas-me com um sorriso e contavas-me o que ias fazer e o que tinhas feito para continuares a ser a pessoa mais incrivel que conheço. E lá ficaria eu fascinado e apaixonado e ficavamos, talvez, felizes para sempre.
Mas em vez disso vivemos neste mundo fechado em que todos caminhamos como hamsters dentro de uma bola de plástico translúcido. Podemos ver outras pessoas, podemos deseja-las mas estamos proibidos de comunicar e tocar nessas pessoas que têm a sua própria bola protectora.
Num mundo perfeito (cá está, mais uma frase começada assim) todos nos tratavamos por tu e eu já te tinha dito
- Que bela pele tu tens
sem que tu estranhasses a ousadia e interpretasses erradamente o meu fascínio.

20 de setembro de 2009

Lá em casa nada igual

No dia em que nos conhecemos não estava assim quente. Chovia e havia acidentes na rua. Como hoje está calor e o trânsito flui eu nem me lembro que faz hoje três anos que nos conhecemos. Também se torna cada vez mais difícil lembrar como os teus olhos eram amarelos (e tu achavas uma parvoíce não encontrar uma cor melhor para os descrever) ao sol. Um amarelo escuro com rasgos acastanhados e uma mancha verde. Em tempo mais sombrio os teus olhos eram verdes com a mancha azulada. Sim... Cada vez é mais difícil lembrar com exactidão. Lembro que odiava quando dizias asneiras mas também odiava tabaco e adorava a forma como tu fumavas portanto vai-se a ver e até adorava a tua forma de dizer asneiras.
Quase que entra o Outono mas a tal chuva que caía no dia em que nos conhecemos hoje fica lá em cima. Não lá em cima porque lá em cima não há moradias de gotas. Céu limpo e as gotas estão aglomeradas todas, penso eu que bastante apertadas, num campo de refugiados de gotas a norte sul este oeste daqui. Aqui chuva nenhuma. Nem do céu nem minha que agora com as rugas que me rasgam a cara não convém facilitar e deixar que mais água as eroda como uma falésia que dura com a dureza que se dissolve na paciente suavidade da água.
No dia em que nos conhecemos, lembro agora, chegaste a horas e eu a dizer
- Foste pontual
Tu a responder ainda envergonhada
- Eu chego sempre a horas
Agora sei que é mentira. Há mais de ano e meio que marco encontros e tu não apareces. Mando-te mensagens, ligo-te e nem uma resposta que confirme ou desminta que vens. Agora eu aqui agarrado a memórias que já nem sei se lembro bem e a uma ruga no olho esquerdo que juro por mim e por ti que não estava lá antes de teres desaparecido. Naquela manhã em que a cama vazia se transformou numa casa em que ao chegar nem um cheirinho de esparguete, nem um som de televisor, nem nos dias bons um corpo nu à minha espera. Nada. Uns lençois vazios que foram perdendo o teu cheiro tal como a casa foi perdendo o teu cheiro, o teu som, a cor dos teus olhos e a sombra do teu corpo envernizado nos espelhos do corredor. Na cozinha a cafeteira onde ainda faço café à tua maneira mas nunca sai à tua maneira.
Hoje não chove como chovia e os carros não batem. Os condutores não discutem. Que desculpa tens para demorar tanto a vir num dia de sol assim e no qual até podias dizer
- Foda-se vou fumar um cigarro
que eu ficava aqui fulminado de devoção a observar enquanto me aliviavas a ruga do olho esquerdo?

13 de setembro de 2009

A face que enviou mil navios

Certa noite sonhei que ela adormecia ao meu lado, no carro, numa qualquer viagem. Por intermédio das curvas ou necessidades de conforto toda a face dela estava virada para o exterior, no sonho dela, a ver fosse o que fosse.
Um sonho dela dentro do meu sonho.
Iamos a caminho de qualquer sítio feliz, disso tenho a certeza. Embora não saiba quem ela era sei que no sonho era a minha mulher, casados ou não nem interessa, ela minha mulher e eu homem dela, assim com posse e segurança e submissão insegura. Durante todo o sonho, que nunca deixou de ser um sonho, eu só lhe via a parte de trás da orelha, o cabelo no ombro adormecido como ela e o pescoço relaxado. Tudo do lado esquerdo.
Não a tentei virar, não tentei ver quem ela era. A paz raramente necessita de feições.
Passei anos a pensar nesse sonho, associei-o à magia das viagens com os meus pais e ao enorme desejo que tinha de conduzir e amar. Conduzir carros amar mulheres. Por esta ordem.
Um dia, enquanto conduzia uma delas no regresso a casa, uma pergunta não regressou com resposta. Ficou ali suspensa entre o barulho do motor e o ritmo suave da música. Pensei em dezenas de razões para ela não me ter respondido. Conduzi quilómetros até que me ocorreu questionar se ela tinha ouvido. Ainda por cima era uma pergunta banal e sem gravidade. Não havia razão para não me responder.
Ao olhar na direcção dela. A resposta.
Ela dormia. Um sono leve, interrompível com o mínimo solavanco. Ao contrário da mulher do sonho eu via-lhe a cara e fiz questão de lhe dizer, quando chegamos e ela acordou com a quietude do carro (bela estranheza esta de termos medo de acordar alguém com um solavanco mas conseguir que ela desperte ao ausentar os movimentos), que ar engraçado ela tem quando dorme. Perder o sorriso e ficar séria não é nada o estilo dela. Ao dormir, as suas bochechas caem como se o sorriso dela fosse a gravidade zero de toda a face, anulada pelo adormecer do resto do corpo.
Ela sorri. Beija-me.
E eu lá sem inspeccionar a orelha ou o cabelo rabiscado pelo ombro que tapa o pescoço que fica também por comparar. Eu só a inspeccionar o olhar dela e as bochechas, já na lua ou submersas com o sorriso que ela abre, a elevar toda a cara. Cara que, na do sonho, nem conhecia.
A paz às vezes tem face e não há sonho mais pacífico que aquele.

6 de setembro de 2009

Tenho-te

Os ingleses têm uma expressão que explica bem o sentimento de vigília por alguém.
"I got you"
Somos responsáveis pelas pessoas que fazem parte da nossa vida, quer nos devam alguma coisa ou não. Quando se diz
- Fico-te a dever uma
nem sempre se contrai uma dívida. Muitas vezes é só o peso mental ou talvez moral de ter um vinculo entre duas pessoas. E duas pessoas ligarem-se, num mundo tão grande e populoso, não pode ser vulgarizado.
No Principezinho a raposa ensina ao pequeno protagonista o que é cativar e a responsabilidade para a vida inteira que temos pelas pessoas que cativamos. Assim como se fosse (e é) uma das coisas básicas que todas as crianças têm de aprender antes de crescer.
Costumo avisar, numa despedida, que comigo as pessoas não têm nada que agradecer e dispõem sempre. Uns agradecem-me a achar que estou a dizer aquilo por conveniência, outros, os que me conhecem não agradecem, piscam o olho ou sorriem como que a dizer
- Eu sei.
É bom tomar conta de vós...

30 de agosto de 2009

Azul

Obviamente que te procurei. No dia em que pensei escrever isto, no dia em que comecei a escrever, no dia em que rasguei a folha, nos três dias seguintes e também hoje, o dia em que finalmente reescrevo tudo.
Sim, procurei-te. Por baixo das mesas a ver se os sapatos verde sapo estavam cruzados. Procurei também por cima das divisórias das mesas na esperança que de lá emergisse a tua profunda e agitada cabeleira castanha, interrompida de madeixas azuis e daquela borboleta vítrea com que apanhas o cabelo. Andei a cheirar o ar de olhos fechados a ver, perdão, a sentir se apanhava o rasto daquele aroma que só tu tens e que enche onde tu estás.
E nada. Nem tu, nem sapatos, nem borboletas, nem perfume. Tu foste e eu aqui, ridículo e perdido. Eu que sempre disse
- Olha que eu não sou como os outros homens
e afinal sou. Ridículo e perdido e desesperado por teres partido do nosso local e não estares em nenhum dos meus ou teus.
E não era que as sombras não respondessem às ordens da tua anca nua ou tapada com aquele vestido azul caneta bic que ia tão bem com os teus joelhos. A luz a enevoar-se vergada nas curvaturas do teu doce planeta. Aqui rosado pele ou azul caneta bic, ali cinza sombreado.
Também não era que a tua voz não me agradasse, nem o teu olhar vítreo como a borboleta, se a borboleta fosse azul como é o teu olhar, me desagradou alguma vez.
Sei lá o que era que me fazia dizer
- Olha que eu não sou como os outros homens
quando não tinha mais argumentos.
No dia em que foste, com os teus joelhos, ombros e sapatos verde sapo no meio de mais uma discussão, a única que não acabou em perfumes misturados na cama ou sofá e vestido azul caneta bic no chão perguntaste-me, com calma mas sem tempo a perder
- Está bem, já percebi que não és como os outros homens. Mas afinal és melhor ou pior?
eu de boca aberta em pasmo. Sempre me bastou, contigo e com as outras antes de ti, dizer que era diferente dos outros e pronto. Vocês agradecidas por eu fazer esse favor de ser vosso e a conversa acabava ali e recomeçava numa outra direcção.
Fiquei sem responder e tu ficaste sem ficar e foste para um sítio que não é este nem nenhum dos outros por onde já passei à tua procura. Em casa ainda está o vestido azul caneta bic arrumado no teu lado do armário e o perfume meio gasto no teu lado da cómoda no caso de regressares e quereres deitar o vestido ao chão e misturar os nossos perfumes na cama ou no sofá só mais uma vez.
Não sabias dizer, antes que me faltasses tanto, que não eras uma mulher igual às outras?

23 de agosto de 2009

Asas

Há um momento antes da partida em que não somos nós. Somos outro qualquer sem história ou herança. Somos uma tábua rasa como um bebé acabado de nascer.
Depois um tiro ou uma voz
- Vai!
e voltamos a ser o que somos. O treino que nos levou até ali. A dor sem a qual não chega o ganho. A história do esforço e a herança de um corpo bom.
O medo que o corpo rompa.
E é rápido, muito rápido, que nos movemos, um grande passo de cada vez de forma que correr já não é equivalente a andar rápido mas sim a voar raso. Um toque esguio de cada vez como uma garça ou cegonha em descolagem de um lago. As vozes na cabeça
- Dói-me a coxa
ou
- Da última vez ia mais equilibrado
ou
- Já perdi tudo só na partida
o descrédito e o joelho que só com injecções curou a última das tentativas de bater o recorde. O pé que tocou no chão mais do que devia.
A voz do primeiro treinador
- O pé não toca no chão. Só os dedos. Só os dedos!
Não há gravidade alguma. Não há piscina que transmita tanta leveza como correr. Correr com o corpo todo. Levantar as pernas o mais possível e castigar o chão por nos querer prender. Empurrar os braços como um boxeur para a frente e para cima a cortar o ar. A cara deformada do esforço e da deslocação da massa corporal. O coração que quer correr mais que nós.
Não sei como é com os pássaros mas com o Homem são as pernas que lhe dão asas.

17 de agosto de 2009

Sangue novo

Faz parte da condição humana necessitar de novidade. Por isso mudamos de casa, carro, destinos de férias, estilo de vestir, música no mp3...
É também por isso que há um especial prazer nas novas pessoas que nos aparecem. Os velhos amigos, por mais que os adoremos, lidam mal com a nossa mudança porque durante anos fomos os mesmos.
O amigalhaço dos jogos de computador ou o amigo feio que ouvia as queixas de corações partidos por tipos giros. Quando damos a volta por cima e nos tornamos nós próprios, por exemplo, em involuntários quebra corações, as pessoas que nos conheciam deixam de nos acompanhar.
Não é que desapareçam mas ficam presos à imagem que durante anos foi a nossa.
É essa a alegria do sangue novo que nos é injectado pelas pessoas que de súbito pedem para entrar na nossa vida.
Essa vontade de aprender sobre nós, sem nenhuma ideia pré-concebida, é lisonjeira e benéfica.
O curioso é que a necessidade de partilhar essa novidade que uma nova pessoa entrou na nossa vida chama pelas pessoas velhas. Só elas têm paciência para ouvir e aconselhar sabiamente.
Muitas vezes enciumadas ou admiradas da pessoa em que nos tornamos.

9 de agosto de 2009

Um dia morro de vez

Esta semana discutia com uma colega de trabalho como acho que a crença na alma indestrutível não passa de medo de morrer. Medo do final mais redutor. De num segundo haver e no outro não.
Ela não concordou... Não só acredita na alma como não vê a morte como o fim. Eu aceitei porque nem ela ia passar a ser do meu clube nem eu ia ser seduzido pelo dela.
De facto penso que a morte é um fim. Como se tivéssemos uma ligação à electricidade e ela deixasse de chegar ao fio. Alguém a dizer
- É geral
em vez de
- Foi só o fusível do corredor
E olho assim para a vida com a certeza que ela acabará e pronto, sem a angústia que, por exemplo, a Amália tinha quando dizia em privado que não percebia a piada de viver se se tinha de morrer.
Eu não quero morrer, note-se, não para já, mas aceito que num dia mais curto do que os outros me vou de vez. Deixo algumas coisas feitas que, como toda a gente, em tantas voltas que o planeta dará se vão apagar de importância, memória e registo.
Quando todos os meus familiares, amigos e amores me acompanharem em morte há aquele pedaço de memória que guardavam de mim que acaba.
E isso não me preocupa nem um bocadinho.
Há aquele triptico de objectivos que alguém disse ser a condição sine qua non para uma existência útil no planeta.
Ter um filho
Plantar uma árvore
Escrever um livro
Ainda não cumpri nenhuma das três portanto morrer agora era um desperdício. Para mim e para o mundo. Mas já sei como é que se fazem filhos e como é divertido ir treinando o lado recreativo da coisa antes que o apelo do lado reprodutivo chegue, ainda não plantei uma árvore mas já ofereci algumas plantas que, por terem sido dadas com carinho, floresceram mesmo depois de terem perdido a ligação à terra.
Livro? Não. Ainda não escrevi um livro. Mas já escrevi algumas cartas em papel e à mão que, todas juntas, chegavam para uma antologia de mim e delas, as que receberam as cartas.
Somos energia e moléculas, peças que agregadas fazem a força que nos move. Ao morrer a energia acaba e as moléculas separam-se.
E o paraíso é o que fizemos da terra enquanto cá andamos, durante o tempo que estivemos a agir sobre a energia e as moléculas dos outros.

2 de agosto de 2009

M de Madrugada

À noite, muito escuro e silencioso, na paragem de autocarro onde me acostumei e desacostumei a apanhar autocarros, um segurança ainda fardado questiona-me
- Que horas são?
e eu surpreendido com a interrupção de um qualquer pensamento lá respondi
- Uma e meia certas.
O segurança sorri
- Dá tempo para ir à praça e voltar no mesmo autocarro
sempre de olhar perdido num sorriso atravessa a estrada e senta-se na paragem onde os autocarros que passam vão para o sentido oposto ao que desejamos. Pensei que fosse brincadeira mas quando o tal autocarro para a praça passou ele entrou. Cerca de quarenta minutos depois o autocarro regressa, agora já na direcção que me interessa.
Na frente, de sorriso largo e a falar sobre qualquer coisa que não percebi com o motorista lá estava o mesmo segurança. Ignorou-me.
São estas personagens que viajam nos autocarros da madrugada. Os solitários agridoce ora sorridentes da viagem ora tristes da chegada.
Há também os casais. Genuínos como não o são os exuberantes casais de jovens das rotas diurnas. Estes casais dos autocarros nocturnos envelheceram juntos como vinho com o carvalho. Apurados a passeios e danças com a mão pousada sobre o ombro ou dada no colo com a calma aparente de um laço de marinheiro. As mãos são tão frágeis como cordas de seda mas o elo inquebrável.
Há a boa gente de trabalho que, por sair aquela hora, só pode ser muito dedicada ao que faz e vai o caminho todo a falar ainda do serviço. Aos grupos de três e quatro lá vão operários de empregos que nem sabemos que existem e que não sabem como deixar o trabalho lá.
Há os tolos que, talvez alguém saiba a resposta do porquê, têm um bom sentido de orientação e nunca se perdem nem quando os gatos ficam pardos. Fazem conversa com todos ou olham desconfiados para ninguém.
A verdade é que há poucos locais mais seguros na noite que um autocarro nocturno e a sua linha. Poucas pessoas me enternecem mais do que os seus passageiros. Cada uma com tantas histórias, um sorriso quente e um olhar desperto a quilómetros do alheamento dos viajantes diurnos.
Os motoristas à noite sorriem e conversam. Param sempre que um passageiro distraído vê o autocarro no que de dia seria tarde demais. Eles sabem do que falo.

26 de julho de 2009

Batalha Naval

Da única vez em que estive internado no Hospital havia a Isabel.
Entrou na minha segunda noite por causa de uma doença qualquer que já não sei qual era. Sempre com um sorriso nos lábios mesmo quando dormia. No dia seguinte continuava o sorriso mas desta vez desperto, fugidio com o meu olhar como se os meus olhos fossem pés que faziam barulhos no chão do bosque e ela uma borboleta ou um colibri.
Começamos a falar através de um oceano de faz-de-conta recriado numa folha de linhas com quadriculas desenhadas à mão. Nós ali presos nas camas numa enfermaria com janelas que davam para gabinetes mas a navegar furiosamente e a trocar tiros a querer afundar porta-aviões e submarinos.
E foi essa marinheira que me mostrou que pronto, era aquilo que eu queria para a vida toda.
À noite uma lição de cumplicidade depois da batalha. Sempre que uma enfermeira passava, com os passos pesados de um soldado, ela que agora era o nosso inimigo, calavamo-nos com um sorriso parvo para depois recomeçar a conversa no ponto onde ficou ou num novo lugar. Ela até fechava os olhos para ser credível. Eu não conseguia. Observava-a como na noite anterior, agora com ainda mais fascínio.
E assim se passaram 3 ou 4 dias, já não sei, entre batalhas no mar e nos puzzles com os apitos da máquina de soro dela que me afligia porque via series de médicos e apitos nunca eram bom agoiro.
Passados anos ainda me lembro dela e como fiquei deprimido e choroso na tarde em que lhe deram alta
- Agora que estavas a ficar melhor é que tens dores?
e eu com vergonha não dizia a verdade e deixava-me chorar enquanto a enfermeira me fazia massagens com uma daquelas pomadas frias ao toque. No dia seguinte saí e nunca mais entrei na enfermaria ou estive internado.
Agora, como nestes últimos anos, tenho por ela o mesmo fascínio reservado que se deve ter com os famosos que admiramos. Uma enorme curiosidade de conversar e saber o que faz mas medo que, ao chegar ao encontro, tudo não passe de uma ilusão e que a imagem que temos da pessoa seja falsa ou só tivesse sido verdadeira naquela altura de eterna novidade.
Sendo assim tenho-a cá dentro como batalhadora furiosa e conversadora curiosa de face luminosa de dia e sorriso lunar à noite. A pequena Isabel que apitava de duas em duas horas e que me fez, pela primeira vez, doer de amor.

19 de julho de 2009

O Cofre

Enternece a forma como as pessoas tentam ler peitos. Assim com um estetoscópio como o fazem os médicos mas com a curiosidade e perícia de um assaltante de cofres à espera do click ou lá qual é o som que os cofres fazem no seu interior para que possam dar uma olhada cá dentro.
É por isso que tantas vezes nos lançamos nos braços de outra pessoa como um deprimido crónico o faz ao psicólogo. É a salvação que vem aí e nós queremos que tudo seja simples e processado. Fácil de ler e resolver. A questão é que o nosso peito usa sempre a blindagem mais forte com fechaduras de combinação e chaves impossíveis de copiar. Quem está de fora, ainda a tentar abrir o nosso cofre, dificilmente acredita que não sabemos onde guardamos a chave. A combinação foi mudada para um código que nunca esqueceríamos mas esquecemos.
Aí entra a análise da retina. Muita gente pode saber a combinação; a chave pode ter sido roubada ou perdida mas os olhos, se forem os olhos certos, abrem o peito sem resistência.
E não abre. A portinha que chega para o coração se expor não abre e aquela pessoa que se pensava ser a salvação não é nada. É mais uma curiosa a olhar para uma porta que, incapaz de lidar com o que encontraria lá dentro, não merece que ela se abra.
Esta semana voltou a mim um forte sentimento de orgulho e felicidade, fruto de umas tantas memórias que por estarem lá muito para trás (tenho de contar anos com dedos das mãos para perceber quanto) até já se vão esquecendo. Memórias de um tempo em que a porta não abriu nem a martelo e durante o qual o conteúdo foi crescendo em brilho em vez de mirrar com a falta de ar.
E noutro dia noutro sítio, com outros olhos a tentarem sem pressa, a porta lá se abriu sem resistência. Lá dentro um coração fresco acabado de colher e espaço suficiente para outro morar confortável.

12 de julho de 2009

A Sílvia, a Diana e a Cláudia

São três mulheres da minha vida e, embora tenha conhecido duas Dianas, uma Sílvia e uma Cláudia, as do título nem sei quem são.
A Sílvia morava perto do centro de saúde mais próximo de minha casa e era familiar de um tipo que tinha um armazém lá perto. A Diana passa todos os dias perto de uma rua de acesso ao centro comercial Parque Nascente. A Cláudia apanhava algumas vezes camionetas e sabia o que Je t'aime quer dizer. Estas três senhoras morreram recentemente.
Não sei se já morreram efectivamente mas, para mim, morreram porque já não estão no pedaço de parede ou chão que as imortalizava. A inscrição "Cláudia Je T'aime" foi pintada por cima quando se fizeram as obras na garagem onde chegam as camionetas vindas de e idas para Lisboa. A inscrição "Diana Adoro-te!" foi obliterada pela passagem dos camiões das obras que rasgarão a linha de metro para Gondomar.
A Sílvia, a mais antiga destas mulheres, vivia numa parede verde em letras amarelas colocadas mesmo por cima da entrada da garagem dos tais armazéns. Encontrou o seu fim depois da venda do edifício a alguém que julga que uma fachada canelada de alumínio é mais bonita que um nome de mulher.
Imagino se quem as matou tentou descobrir quem elas eram para lhes pedir desculpa pela profanação da homenagem e do nome ou se fez como um cirurgião que errou num corte de bisturi e passou o pelouro das desculpas para uma enfermeira imigrante de quem nem sequer sabe o nome.
Que lhe dê o nome de Sílvia, Diana ou Cláudia mesmo que ela discuta que no país dela não existem esses nomes e ao menos que durma por lhes ter dado uma cara.

5 de julho de 2009

1/2

Esta semana, no dia 2 de Julho, passou-se uma data que passa (passando o pleonasmo de tantos passares e passados) ao lado da maioria das pessoas. Este é o centésimo octagésimo terceiro dia do ano. É o meio do ano.
Há para trás cento e oitenta e dois dias e restam outros cento e oitenta e dois para diante. São estas datas que nos obrigam a parar e reflectir sobre o que se passou e quantas das resoluções de ano novo já nos encarregamos de resolver.
A nossa vida, felizmente infelizmente felizmente infelizmente não tem backups como os que fazemos antes de formatar o disco do computador. Fazemos borrada e a nossa vida vai para sítio incerto e não há técnico de informática que nos devolva o que perdemos. Este meu meio ano foi para parte incerta (que é onde está sempre na realidade) no plano afectivo e vai caminhando para a incerteza no plano profissional. Em ambos não sinto a necessidade de backups embora um fiozinho de ligação à terra, a haver, daria uma segurança que conforta.
Grande parte deste meio ano foi passada num leve sofrimento, que não explicarei porque nunca se sofre sozinho, sempre interceptado por momentos de felicidade e sorrisos cumplices que se sobrepunham sempre aos tempos sombrios. Na vida, como nos computadores, um reiniciar ainda resolve muitos problemas e não, não é preciso ser à bruta. Tendo paciência a nossa janela reinicia sem que uma brisa deixe de entrar e a anterior brisa, de aroma diferente, esvoaça para outra janela sem partir os nossos vidros.
Agora vive-se a sorrir, a passear, a comer pêlos de gata e a ressonar (nada que não se resolva com uma cotovelada, mais uma vez, como com os computadores) sem peso nos ombros mas imensa curiosidade assustada de ver se a tempestade deve ser agarrada ou não.
Profissionalmente continuo nesta carreira de cantor de rua figurado. Canto com talento e esforço mas para já nenhum olheiro das editoras se aproximou e como sou orgulhoso, arrogante e sei o que valho o chapéu das esmolas fica na cabeça mesmo que os transeuntes fiquem tontos à procura de onde meter a moedinha como se eu fosse uma máquina de café.
O meu meio ano passou rápido mas deixou marcas lentas, como estrias que ficam depois de uma dieta milagreira. E as estrias, como as rugas, sempre me pareceram mais sinais de coragem e viagem do que imperfeições a combater.
E hoje, até já falta menos de metade para o final do ano.

28 de junho de 2009

Pocahontas

Muito antes de eu saber o que era uma mulher bonita já a mulher mais bonita da praia era aquela. Tinha um olhar tristonho encaixado na cara oval. O cabelo negro descia pelas costas e perdia-se até ao final da coluna acabando mesmo ali, no início da anca que ia sempre tapada com uma saia comprida preta. E tal como no cinema, as mulheres belas de olhos chorosos e cabelos torrenciais têm um passado que não deixa o futuro em paz.
Esta mulher, que pouco tempo depois encontraria na personagem da Disney, Pocahontas caso esta tivesse a pele de uma camponesa nortenha, arrastava sempre à sua frente um homem mais velho. Uma efígie sentada em eterna contemplação como um pensador de Rodin a olhar em frente. A cara esculpida muito mal cicatrizada às mãos do tempo. Esta estátua era o pai da Pocahontas nortenha.
Dizia a lenda local, porque mulheres daquelas precisam de explicação e mesmo que não a haja inventa-se, que naquela família corria uma doença que aos trinta anos tolhia os movimentos e sensações. Era quase como uma maldição bíblica de um Midas que transformava a sua prole em granito. A mãe da Pocahontas tinha partido há muito sem lhe deixar nada a não ser os olhos largos e a anca doce que enchia a saia preta de brilhos de veludo.
Não sei o que a animava. Especialmente quando dava o iogurte às colheres de chá ao pensador havia nela uma graça e ânimo que parecia estar sempre grávida. Parecia que para ela havia esperança a cada colher de chá de iogurte natural como se estivesse a alimentar um filho. Ela, como a mãe do pai. Imaginem a Pocahontas a viver na Ilha de Páscoa e a alimentar uma das austeras estátuas a desejar, porque os olhos grandes têm mais líquido lacrimal e transparecem como lagos, poder tê-la no colo.
Assim era a mulher mais bonita da praia para a qual eu ia.
Há cerca de ano e meio morreu o melhor amigo do meu pai e eu fui ao funeral com o intuito egoísta de observar como o filho do falecido, um ano mais velho que eu, lidava com a perda do pai. Na minha família também há genes raquíticos e há que estar preparado para todas as eventualidades.
Teria a Pocahontas uma bola de cristal na figura granítica do pai? Estaria ela a ver no que se ia tornar?
Teria ela tomado a decisão de não continuar a transmissão do gene granítico acabando assim com a maldição da família?
Ela deixou de ir à praia e ao longo dos anos fui conhecendo mulheres que me mostraram o que eram ancas perigosas, olhos límpidos e cabelos como estradas. E nunca vi essas coisas que as mães deixam às filhas de herança numa jovem a arrastar uma cadeira de rodas com uma cariátide alimentada a iogurte natural numa colher de chá sentada em contemplação, silenciosamente, como uma estátua onde deixar uma rosa todos os dias parece fazer a diferença.

21 de junho de 2009

Blues

Há 3 semanas foi publicado no site Post Secret o segredo de uma pessoa que dizia que sabotava todas as suas relações para ser um melhor músico. Esse site é muito propenso a que nos sintamos identificados com algumas das coisas, algumas delas assombrosas, que por lá se confessam mas nunca nenhuma me tocou tanto como esta. Não no sentido da sabotagem que, pelo menos de forma propositada, não exerço mas sim na medida em que me sinto mais altivo e criativamente fértil quando me sinto miserável.
Uma quantidade enorme de grandes artistas sofreu de doenças crónicas e/ou degenerativas. Pensem na Frida Kahlo e na sua coluna despedaçada ou no Van Gogh e a sua eterna desilusão. Mais ainda pensem em todos aqueles pintores que para atingir a finura ideal do traço afiavam os seus pincéis nos lábios num beijo envenenado de chumbo. Eles iam definhando com queda de cabelo, psicoses, falhas renais e cardíacas, impotência e, em casos extremos, morte. De cada vez que pintavam uma pestana de musa ou um bigode de banqueiro entregavam mais um pouco de si à arte, literalmente.
Nós, como observadores, somos cúmplices involuntários de um suicídio e como nos divertimos à custa desse sofrimento só me ocorre a palavra sadismo para descrever a forma suja mas inocente como beneficiamos do sofrimento dos artistas.
Uma professora de História da Arte disse-nos uma vez que a representação pictórica da melancolia tinha praticamente desaparecido. Na minha opinião isso aconteceu porque o artista queria pintar melancolia e só lhe perguntavam
-Porque é que o senhor da pintura está triste?
e ter de explicar que ele não estava triste mas sim melancólico seria como um comediante explicar a punchline da sua piada.
Será desta falta de pintura que surgiu Antero de Quental?
Eu entendo bem o/a artista que enviou o segredo porque também eu, de forma incrivelmente cíclica, sou um dependente da melancolia. Uma vez disse a uma namorada que depois se tornou numa pouco saudosa ex que por vezes sentia saudades de me sentir melancólico e solitário. Ela, coitada, que nunca entendeu a diferença entre melancolia e tristeza, achou estranho e disse que isso era estúpido. Anos depois descobri a Ana Moura que dizia numa música demasiado recuada do seu CD "Já não temos fome mãe / nem temos também / saudades de a não ter".
Parece-me ser este o caso da melancolia. Do sofrimento nos olhos e ombros nasce nobreza.
E a escrita melhora exponencialmente.

14 de junho de 2009

-te

Conseguimo-nos lembrar de umas 30 palavras sufixadas com -te.
Aposto, mesmo assim, que sei em qual vocês estão a pensar...
Há palavras que se vulgarizam, seja por moda ou simples uso excessivo, palavras que um dia foram inventadas por alguém que deve ter pensado ter finalmente conseguido classificar um sentimento ou emoção e que afinal inventou uma palavra para todos usarmos como roupa interior.
Outras palavras há que temos de proteger e usar com cautela. Usar só em casos especiais e quando nada mais existe. Um pouco como chorar só quando a tristeza não é suportável pelo corpo e lá cai a lágrima.
Assim é com o "amo-te" que se diz por aí. Devia só ser dito quando o batimento do coração chega aquele ponto de quase rotura em que o amo-te seria como o buraco no crânio que alivia a pressão num cérebro inchado. O amo-te era o buraco nas costelas que salvava mas ao mesmo tempo desprotegia o coração. O amo-te devia atingir-nos sempre como um cubo de gelo quente e suave. Devia ser sempre forte e doce e tocante e inesperado.
Devia ser mais vezes dito na escuridão do quarto com a tal pessoa abençoada pelo amor declarado dentro dos braços a apertar o abraço quando ouvia as palavras que só para ela se abrem. Devia ser dito de surpresa a meio de uma balada dançada sem passos combinados ou então a meio de um jantar sem televisão nem luzes nem sumos baratos.
Podem dizê-lo no carro e no trabalho. Podem dizê-lo sentados na retrete ou de mão dada na base da Torre Eiffel.
Se precisam de coragem para o dizer, se tremem quando o dizem, se ficam em suspenso à espera do "eu também te amo" que esperam receber de volta a morder as unhas por dentro estão a fazer as coisas como se deve e estão a dizê-lo à pessoa certa.
Usem esta palavra só quando ela tiver impacto e por favor digam-na por completo e nunca um "uhmmm-te muito" como já ouvi.
O amo-te tem de ser uma dor boa, um misto de alegria matinal, orgasmo vespertino e reminiscente de duches nocturnos. Tem de ter impacto ou então passa a ser uma palavra inerte cheia de conveniências e necessidades de dicionário.
Passa a ser uma vírgula.

7 de junho de 2009

Somos o que fomos

É nessas noites importantes que a conversa surge pintalgada de frio, café e cigarros.
A senhora velha, não tão velha assim mas de aspecto velho com a maquilhagem vermelha mal pincelada e a pele demasiado alaranjada para ser colorido solar fala sempre no que foi e onde esteve.
Nessas noites em que não consegue parar o cigarro e prestar atenção aos distintos clientes só o fato impecável e as palavras ausentes de mácula mostram que é, também ela, uma senhora distinta. Deve ter sido em tempos uma mulher atrevida e dona do seu nariz. Com um impertinência e mimo demais que os senhores mais velhos com quem se dava sentiam prazer em alimentar. Esteve em França e na América, trabalhou num sitio onde tinha de tratar os patrões por Messieur e Madame e estudou arte em Itália.
Agora?
Agora é só mais uma senhora velha confiante que o fato e o bâton vermelho exagerado evitem que seja tratada por dona. Uma daquelas senhoras dependentes da bondade de estranhos que emprestem a atenção durante o tempo suficiente a resumir a sua história.
Fala da juventude e do primeiro casamento como se a vida tivesse ficado lá atrás com a impertinência e a leveza de um corpo de textura leitosa. Como se a vida tivesse acabado no divórcio e na primeira ruga.
Eu fico do meu lado a pensar em toda a tristeza silenciosa camuflada de memórias felizes que nos rodeiam e, como a tal pessoa que em terra de cegos tinha olhos, tenho vergonha de ser feliz.

31 de maio de 2009

Obturado

Diz-se da relação entre animais e donos que passado algum tempo se copiam.
O olhar confunde-se e alguns trejeitos de ambos são contagiosos. Eu já vi senhoras a inclinarem um pouco a cabeça para o lado quando pedem alguma coisa ou quando não perceberam algo. O olhar dos pedintes, o cair dos ombros em submissão, é decalcado de um cão que tiveram em pequenos e que era louco por restos de fiambre.
Assim é com as pessoas e pessoas. Pessoas com relacionamentos com pessoas. Amigos, Pais, Amantes tanto faz. Copiamos os jeitos e os ditos das outras pessoas sem saber que o fazemos. Habitualmente copiamos as pessoas a quem reconhecemos maior autoridade ou de quem gostamos mais.
Outras vezes é um assombro. Como matar uma pessoa e ver o olhar dela a picar-nos todas as noites antes de adormecer. Foi um assombro ver-te nas minhas fotos, no olhar ensaiado que eu fiz para outra fotógrafa que não tu. Pose de simpatia, pose de turista flash click.
E quando discuto as pessoas dizem-me
-Não ponhas esse olhar que não é com isso que te perdoamos
como quando eu te dizia
-Não me olhes assim porque não te perdoo
Nas fotografias da praia, da viagem à neve, de casa, a brincar com o cão o teu olhar de carinho e o teu riso de menina largo de luar flash click.
Não cheguei a ver-te chateada comigo por isso nem sei como agir. Faço uma cara neutra enquanto perco a razão e chamo nomes a quem me enerva. Esqueci como se franzem sobrancelhas e nem a perdigotos ao litro ganho respeito.
Podia também viver sem o teu sorriso a olhar para o céu quando o dia está solarengo ou sem a forma como pegavas no guarda-chuva em dias cinzentos.
Cheguei-te a dizer que tens o sorriso mais bonito que já vi?
Usaria eu o adjectivo bonito se tu não dissesses tantas vezes que isto ou aquilo era bonito?
Era capaz de me entender melhor se não usasse o teu sotaque ou se pudesse apontar com o dedo no mesmo ângulo que apontava antes de tu chegares, vires e partires.
Agora uma foto à frente de uma paisagem algumas vezes nossa e eu sozinho, ar contente, sorriso misterioso e olhar entrecortado por pestanas.
A tua leveza envergonhada de mãos juntas à cintura como que a rezar para o chão.
Flash, click.

24 de maio de 2009

Onde os velhos não têm nome

O
-Bom dia
Esperançado que me atira nunca é alegre nem triste. É assim como que uma frase inacabada ou um poema que não rima nem é particularmente bonito. É uma saudação que se esquece rapidamente como uma declaração de amor apontada a giz numa parede no dia anterior à maior chuvada do ano.
O olhar azul enevoado sugere-me um mar de algas brancas. A palavra “cataratas” atira-me para a referência aquática e não encontro melhor metáfora do que as algas que parecem estar a flutuar por cima da retina sem nunca largar a pálpebra como uma película de pele que se agarra a uma rocha e segue e volta sem coragem de se soltar à maré das ondas baixas.
-Estou cansado disto sabe. Quando me dói alguma coisa penso que é desta. Mas nunca é. O médico fica todo sorrisos quando me diz que tenho um coração que faz inveja a muitos jovens. Quem dera que ele parasse.
As costas vergadas dos passos tão lentos apoiados em duas canadianas e os quase noventa anos às sete da manhã. Ninguém devia ter de andar na rua às sete da manhã. Havia de haver um recolher obrigatório e o lixo apanhava-se às nove. Os padeiros abriam às nove e só havia pão às dez. O jornal de primeira edição só manchava os dedos do cliente lá para as onze. E este velho de olhar cinza na cor e na esperança seria proibido de sair para o frio àquela hora. Se adiar o jornal e o pão adio a saída dele.
-Durmo cinco horas por dia. Sempre trabalhei cedo, dava-me o sono tarde. Imagine o que é ter 19 horas para trabalhar. Imagine o que é ter uma casa sem vozes durante 19 horas.
E de facto era uma voz enlameada que surgia como se estivesse atrofiada pelo silêncio e pela solidão e de cada vez que tivesse de falar uma crosta rompesse nas cordas vocais e só mostrasse que afinal o dano não era permanente ao fim de algumas frases manchadas de expectoração.
-A minha mulher morreu cedo. Eu não queria morrer primeiro mas ela também não precisava morrer com 53 anos. Veja lá, enterrei a minha mãe depois da minha mulher.
O que se diz a um cadáver adiado de ombros caídos, um meio apoiado nas canadianas, outro na paciência dos estranhos que ficam, como eu sempre fico, mais silenciosos do que a casa dele?
-A minha mulher nunca engravidou. Vivemos sempre em casa dos meus patrões. Não deixo nada nem tenho ninguém a quem deixar nada.
Apeteceu-me dizer que ele fará falta quando já cá não estiver. Pelo menos eu saberei quando ele deixar de passar à minha porta. Sei também que já falei dele a muita gente que se compadece dos seus ombros caídos e dos passos arrastados de canadianas mesmo sem nunca ter visto o tempo que ele demora a percorrer a rua que o leva, invariavelmente, ao jornal e ao pão fresco às 7 da manhã.
Teria-lhe dito que eu sentirei a falta dele quando o seu coração deixar de alegrar o médico porque quando ia para a escola, há mais de dez anos, quando ainda não me deixavam andar de autocarro, ia pelas escadas a torcer para o encontrarmos, eu e o meu pai, à nossa porta, já de regresso à tal casa vazia a dar os bons dias nos dez segundos apressados que lhe podíamos dispensar. Podia-lhe ter dito que ele me dava força para ir para a escola de manhã porque me sentia envergonhado de ser mais fraco que um senhor de idade indeterminada que demorava dez minutos a fazer a minha rua houvesse chuva houvesse sol.
Eu teria dito essas coisas todas, juro, se ao menos me conseguisse lembrar do nome dele. Vou ter de perguntar a alguém. E enquanto não lhe der um nome ele é esquecível porque também os meus olhos, voz e movimentos haverão de ser toldados pelo tempo e só os nomes ficam. Era uma hipocrisia dizer-lhe que tenho memória dele se não o puder arquivar sobre um nome.
Na despedida
-Vá lá jovem. Se não encontrar emprego vá trabalhar com o seu pai que aquilo é arte que tem sempre cliente. A juventude de hoje em dia é alérgica a trabalhar com as mãos e tem medo de acordar cedo.
Devia ser proibido sair de casa antes das nove.
Devia ser proibido viver numa casa vazia de mulheres.

17 de maio de 2009

Rosa cheiraria a Rosa mesmo que o nome fosse outro

Chego a Allaire e mando-te uma sms:
“Allaire”
Nem espero pela resposta porque sei que ela não vai chegar mas seja como for gosto que saibas por onde ando. Já te mandei sms em Vitré, Bubry e Morbihan.
Há uns meses fui à Austria e tive de te ligar. Achei que ias gostar de saber que tinha passado por uma terra chamada Pyhra. Pareceu-me ser nome que gostarias. Não atendeste… Atendeu o teu marido que me disse, após uma dúzia de mentiras bem colocadas sobre a minha identidade, que tu estavas na maternidade. Dois dias antes tinha nascido o vosso filho.
João.
Assim um nome vulgar e humano. Tinham de me explicar isto…
-João quê?
-João Filipe.
-João Filipe quê?
-João Filipe Sousa Matos. Porque pergunta?
-Nem um nome de local?
-Desculpe?
-Local… Não lhe chamaram João Porto ou João Aveiro ou João São Petersburgo?
-Não. Que coisa estranha. Porque pergunta isso?
Desligo e fico a ferver em como vendemos os sonhos com tanta facilidade desde que tenhamos um novo par de braços que os concretiza.
Debaixo da cama, na gaveta do meio do aparador e nos bolsos de casacos que deixaste no guarda-vestidos os sinais do teu doce fanatismo e das viagens que fizemos na busca do tal nome. E relembro todas as vezes que fizemos amor nos comboios de Espanha, França, Itália, Eslováquia, Eslovénia ou Inglaterra e registávamos nas costas dos bilhetes o nome da estação seguinte.
Lembras-te quando enganamos as regras porque a nossa menina não se podia chamar Nancy?
E quando achavas que estavas com enjoos matinais porque, pelas tuas contas, tinhas engravidado naquele voo Porto – Funchal? Decerto te lembras de me perguntar
-Sobrevoamos as Berlengas ou é só água?
-Não te preocupes. Chamamos-lhe Atlântica e está decidido.
E nunca foi… Nunca estavas grávida. Nem de uma Lublina ou de uma La Rochelle. Uma Geltru ou uma Cádiz.
Abrandamos na euforia, o tempo passava e nem de Braga, Leça, Coimbra, Leiria ou Lisboa engravidaste. Foi no Porto que descobrimos (no Porto nunca fazíamos amor porque havias de ter uma menina e ela não podia ter um nome masculino) que nem em Fátima ou Lourdes poderias engravidar.
Eu não te poderia dar essa alegria por mais que escalássemos a Serra da Estrela ou a Senhora da Graça.
Demoraste só uma semana a mudar de mim. Não me surpreendeu a forma como de repente me tornei descartável. Na torradeira, porque tu sabias que o que mais falta me haveria de fazer eram as tuas torradas, um bilhete escrito à mão sem sinais de mancha de lágrimas, batom ou uma pequena borrifadela de perfume
“Sabes qual é o meu maior sonho. Desculpa, tenho de o seguir.”
Compreendi. Talvez encontrasses um motorista ou piloto de aviões que te levasse àqueles sítios onde tu dizias querer adoptar o nome para que a tua filha (sim... dizias sempre tua; nunca nossa) tivesse sempre um pedaço de terra que fosse dela. Sempre que se perdesse pensava no sitio que lhe deu nome e lá chegaria como um pássaro migratório que tem ninho sempre na mesma chaminé.
Um dia ligaste a perguntar onde eu estava e disseste-me
-O meu sonho de ser mãe sobrepôs-se à teimosia de dar um nome geográfico. Era uma parvoíce. Nós corrermos tantos sítios foi uma parvoíce. Sou tão feliz aqui que percebi a tolice que andei a fazer.
-Aqui é onde?
-Ovar.
-Caramba, não admira que lhe tenhas chamado João Filipe.
-Sentiste falta das minhas torradas?
-Claro que senti. Deixaste os casacos e as luvas. As torradas eram a terceira coisa que eu mais gostava em ti.
No sitio onde estou há um vale. Os vales formam-se onde outrora houve um rio que entretanto se foi. Quer-me parecer que o espaço entre costelas aumentou quando tu te evaporaste. Quando o nosso amor deixou de fluir.
Deixaste cá um vale com o teu nome.

10 de maio de 2009

Amanhã à mesma hora

À janela está o caminho para casa.
As janelas dos autocarros já não abrem. Não conseguimos espetar a cabeça fora da janela tipo gárgulas de Notre Dame e sentir o vento a pentear. (Engraçado como o vento só penteia as crianças… Envelhecemos e o cabelo torna-se antónimo. Despenteia-se e nós enervamo-nos.)
O ar não se renova dentro dos autocarros e, se lá dentro sentimos frescura, tudo foi provocado pelo ar condicionado que dá aquele ar de água parada num copo… É um ar com uma fina película de pó por cima.
Não sabe ao mesmo que da fonte. Não sabe ao mesmo que da janela.
Passar 20 anos numa casa não aborrece porque podemos pintá-la ou enfeitá-la de quadros e vasos luminosos mas não me deixam pintar a casa amarela do fundo da rua, não me deixam cultivar rosas no jardim da rotunda e muito menos me deixarão pendurar passpartouts das minhas viagens nas paredes do autocarro. O caminho que já conta 20 anos angustia na sua inércia como um familiar em coma que não conta histórias repetidas.
Aí vi-te! Como não reparei em ti? Como entrei e não me capturaste logo?
Levantas-te para sair e ainda usas o mesmo perfume. Levantas-te e estás mais alta. Usas outra roupa. Ganhaste algum peso que só te fica bem. Ao telemóvel uma gargalhada de que não me lembrava. A memória é uma folha escrita a lápis.
Faltavam-me 12 paragens (acredita em mim, conheço o trajecto) e saí atrás de ti… Ao vento o cabelo que finalmente deixaste crescer.
Quem te convenceu?
Eu que tantas vezes te disse que ficava melhor a sibilar pelas costas e tu que tantas vezes disseste que gostavas de ver o teu pescoço de perfil. Quem te fez esquecer o pescoço?
Sigo atrás de ti. É claro que te vou agarrar como dantes. Ainda te lembras como te tapava os olhos como se tivesse sido eu e não o cinema a inventar o tapar dos olhos a sussurrar ao ouvido?
E lembras o que dizia todas as vezes que o fazia?
Tu que eras tão atenta mas nunca me vias chegar dizias
-Não usas perfume… Não te sinto chegar.
E eu compensava com o toque que dizias ser frio como uma concha porque estava gelado ao primeiro contacto mas logo aquecia.
-E é bom aquecer-te meu búzio.
Estou mais próximo. O teu cabelo como bandeiras numa cimeira internacional. O teu cheiro a levitar como quando saías do banho sem toalha e ias à cozinha procurar a esfregona. Nunca vi ninguém tão preocupado com a saúde da tijoleira.
Passavas de volta e dizias
-Não te ponhas com ideias.
e eu ficava com as ideias e o aroma. Ficava eu e a casa docemente infectados por ti.
É quando estou à distância do meu antebraço que afinal não és tu. O vento sopra e o cabelo toca-me na cara e é mais leve que o teu. De raspão vejo um pescoço que não tem as tuas veias. De olhos a cair noto que ao ombro faltam alguns ossos que só tu tens.
Ela, seja quem for, olha para trás a acusar-me de uma coisa que não sabe o que é. Jovem, nem precisa ser advogada para saber que não é crime ter saudades nem é crime manter memórias das pessoas. Muito menor crime será ser ridículo. Portanto não me acuse de nada, sim?

Conheço homens que vestiram novas mulheres como as anteriores. Deram-lhes a mesma música a beber, mudaram-lhes a marca do tabaco, ofereceram sapatos com o salto à medida dos olhos da outra. Fazem amor com elas às escuras e enganam a memória da textura com a lembrança de outra pele.
Mas nada transforma mais uma mulher noutra do que oferecer o mesmo perfume que um outro pescoço à mostra espalhou pela casa.

O início

Certa vez li que quem lê blogues acaba por fazer um.

Faz então sentido que quem lê crónicas sinta a necessidade de as escrever!

Já o faço uma vez por semana no blogue Alugo-me para rir - para o qual fui carinhosamente convidado e acolhido - e apanhei o bichinho da obrigação de escrever um texto em dia certo. Dia esse que às vezes acaba por ser incerto...

Este blogue tenta ser então um espaço onde publico crónicas todos os Domingos ao meio-dia. Umas serão verídicas e pessoais... Outras serão totalmente ficcionadas. Sempre que houver imagem de minha autoria que possa relacionar com o texto lá estará uma a ilustrar.

Vão passando cá aos domingos para as novidades e deixem comentários!


O nome do blogue justifica-se pela tradução literal da intraduzível expressão francesa L'esprit de l'escalier.
E o que é isto?
Imaginem que estão numa festa... Uma pessoa diz-vos qualquer coisa que vos ofende. Vocês, pressionados pela necessidade de dar a resposta ideal no mais curto espaço de tempo, dizem uma coisa qualquer sem graça e saem porta fora. Chegam às escadas e BAAAM... Lembram-se da resposta ideal, aquela que deixaria toda a gente de boca aberta com a vossa perspicácia mas aí, quando já vão nas escadas e já toda a gente se riu da vossa patética saída, é tarde demais para voltar atrás.

Isto é o Esprit de l'escalier...


Sejam bem vindos