24 de maio de 2009

Onde os velhos não têm nome

O
-Bom dia
Esperançado que me atira nunca é alegre nem triste. É assim como que uma frase inacabada ou um poema que não rima nem é particularmente bonito. É uma saudação que se esquece rapidamente como uma declaração de amor apontada a giz numa parede no dia anterior à maior chuvada do ano.
O olhar azul enevoado sugere-me um mar de algas brancas. A palavra “cataratas” atira-me para a referência aquática e não encontro melhor metáfora do que as algas que parecem estar a flutuar por cima da retina sem nunca largar a pálpebra como uma película de pele que se agarra a uma rocha e segue e volta sem coragem de se soltar à maré das ondas baixas.
-Estou cansado disto sabe. Quando me dói alguma coisa penso que é desta. Mas nunca é. O médico fica todo sorrisos quando me diz que tenho um coração que faz inveja a muitos jovens. Quem dera que ele parasse.
As costas vergadas dos passos tão lentos apoiados em duas canadianas e os quase noventa anos às sete da manhã. Ninguém devia ter de andar na rua às sete da manhã. Havia de haver um recolher obrigatório e o lixo apanhava-se às nove. Os padeiros abriam às nove e só havia pão às dez. O jornal de primeira edição só manchava os dedos do cliente lá para as onze. E este velho de olhar cinza na cor e na esperança seria proibido de sair para o frio àquela hora. Se adiar o jornal e o pão adio a saída dele.
-Durmo cinco horas por dia. Sempre trabalhei cedo, dava-me o sono tarde. Imagine o que é ter 19 horas para trabalhar. Imagine o que é ter uma casa sem vozes durante 19 horas.
E de facto era uma voz enlameada que surgia como se estivesse atrofiada pelo silêncio e pela solidão e de cada vez que tivesse de falar uma crosta rompesse nas cordas vocais e só mostrasse que afinal o dano não era permanente ao fim de algumas frases manchadas de expectoração.
-A minha mulher morreu cedo. Eu não queria morrer primeiro mas ela também não precisava morrer com 53 anos. Veja lá, enterrei a minha mãe depois da minha mulher.
O que se diz a um cadáver adiado de ombros caídos, um meio apoiado nas canadianas, outro na paciência dos estranhos que ficam, como eu sempre fico, mais silenciosos do que a casa dele?
-A minha mulher nunca engravidou. Vivemos sempre em casa dos meus patrões. Não deixo nada nem tenho ninguém a quem deixar nada.
Apeteceu-me dizer que ele fará falta quando já cá não estiver. Pelo menos eu saberei quando ele deixar de passar à minha porta. Sei também que já falei dele a muita gente que se compadece dos seus ombros caídos e dos passos arrastados de canadianas mesmo sem nunca ter visto o tempo que ele demora a percorrer a rua que o leva, invariavelmente, ao jornal e ao pão fresco às 7 da manhã.
Teria-lhe dito que eu sentirei a falta dele quando o seu coração deixar de alegrar o médico porque quando ia para a escola, há mais de dez anos, quando ainda não me deixavam andar de autocarro, ia pelas escadas a torcer para o encontrarmos, eu e o meu pai, à nossa porta, já de regresso à tal casa vazia a dar os bons dias nos dez segundos apressados que lhe podíamos dispensar. Podia-lhe ter dito que ele me dava força para ir para a escola de manhã porque me sentia envergonhado de ser mais fraco que um senhor de idade indeterminada que demorava dez minutos a fazer a minha rua houvesse chuva houvesse sol.
Eu teria dito essas coisas todas, juro, se ao menos me conseguisse lembrar do nome dele. Vou ter de perguntar a alguém. E enquanto não lhe der um nome ele é esquecível porque também os meus olhos, voz e movimentos haverão de ser toldados pelo tempo e só os nomes ficam. Era uma hipocrisia dizer-lhe que tenho memória dele se não o puder arquivar sobre um nome.
Na despedida
-Vá lá jovem. Se não encontrar emprego vá trabalhar com o seu pai que aquilo é arte que tem sempre cliente. A juventude de hoje em dia é alérgica a trabalhar com as mãos e tem medo de acordar cedo.
Devia ser proibido sair de casa antes das nove.
Devia ser proibido viver numa casa vazia de mulheres.

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