31 de março de 2013

On

Há uns tempos, cheguei a casa e pelo ar sentia-se aquele peso adocicado de uma fuga de gás. Tinham-me dito dias antes que num espaço fechado com ar inquinado tínhamos cerca de quatro segundos antes que uma tontura nos atirasse para o chão por falta de oxigénio então, mantendo a apneia, lá entrei em casa e abri todas as janelas que consegui encontrar para purificar o ar. Nunca me ocorreu acender uma luz ou uma chama para alumiar a rota para a limpeza.
É por isso que não me assusto com o ar perigoso e avanço firme nessa casa frondosa e simultaneamente tão aconchegada que é o teu coração, abro-lhe as janelas e as varandas, as portas das traseiras, respiradouros e postigos. Quero atear uma lareira serena em ti, quero-te trazer a luz e o calor com o tempo do carinho e devolver a luz a essa tão tua, tão minha casa. Mas antes tenho de aguardar que a purificação chegue em brisas e correntes de ar e resistir à sede tentadora das luzes imediatas que só resultam em explosões incineradoras e fugazes.
A explosão que trago comigo vai acontecer e durar como uma pira olímpica que percorre o seu árduo percurso para numa festa encher todo o mundo de inspiração. E, de tão bela, declarar-se-á que não mais se apague a chama, que se ignore o botão de On/Off e que por séculos se conte a história de como alguém trouxe ao peito oxigénio puro que entregou seguro no destino após percorrer um caminho de doçura que não pesou nada porque caminhou, correu, penou por gosto.

17 de março de 2013

Foguete

Quando dormimos juntos eu sonho mais. Tanto a dormir como acordado. 
Fico com os olhos presos num ponto incerto e fixo o olhar certeiro enquanto o cérebro sai de mim levado pelo coração. Em alguns desses sonhos eu sou mudo e quero-te dizer coisas e elas não saem. Noutros sonhos, os despertos, apenas te olho sem dizer nada, tu dormes para o teu lado e eu acordado a sonhar de olhos abertos que tu estás ali e eu naquele ridículo de não acreditar. Habitualmente acordo-te com uma desculpa de ser tarde ou de precisar de mudar de posição e quando acordas e sorris eu percebo o tal ridículo e durmo mais rápido para fugir ao embaraço de descrer que ali estão os teus ombros, os teus lábios e os teus olhos.
Temo que tal como no poema do Eugénio um dia as palavras se tornem vulgares e deve ser por isso que quando durmo contigo sonhe que sou mudo e que tu ficas sem saber por quais caminhos galga o meu amor. Haverá sempre um sopro de água que derruba as margens e leve as roupas que secam à beira rio, haverá sempre uma flor em tempestade que ultrapasse as alergias e te traga os aromas do nosso abraço, haverá sempre um prato e um copo, cheios a gosto de quantidade e qualidade, para trazer ao nosso interior a nutrição que por vezes nem uma semana de viagens consegue trazer. Haverá sempre algo que te tire as palavras e as substitua com perfeição vencendo as saudades que temos de poesia entre bocas separadas.
Há um festival de fogo de artificio no qual duas igrejas gregas competem apontando os foguetes ao sino uma da outra tendo imensos edifícios à sua volta. Todos os anos há incêndios e janelas estouradas, feridos e danos materiais avultados. As pessoas falam naquela mitológica terra de cegos onde alguém com um só olho rege e eu gosto de pensar que as pessoas destas duas aldeias são mudas. Não sabendo como se fazer ouvir e sendo as palavras escritas insuficientes decidem lançar explosões e cor aos seus vizinhos como que a dizer as boas noites, como está, lamento, amo-te. Todas as coisas que por vezes quero dizer mas no sonho não consigo porque sou mudo.
Nas notícias dizem que as tais igrejas gregas têm uma tradição nacionalista que justifica a festividade pirotécnica. Eu prefiro acreditar que eles são apenas mudos que amam tanto que só lançando fogo voador conseguem apaziguar a felicidade e a dor.

3 de março de 2013

LP 100 MT

O meu relógio diz as horas mas também diz, por trás, que é resistente à água. Há uma grande diferença entre ser resistente a e ser à prova de algo. Em relação a ti, só para não dar exemplos poéticos e rebuscados, sou bastante resistente mas não sou à prova de ti. 
Às vezes submerjo-me em ti sem querer e depois fica cá dentro uma condensação inestética. Ainda no outro dia enterrava sem reparares toda a minha cara nesse teu cachecol tão fino como se dele para mim passasse essa fina película de aroma que te circunscreve como uma aura colorida.
Acho que vou ter de me sentar e fazer uns cálculos para entender a distância até à qual sou estanque e não deixo entrar nada. Vou-me impermeabilizar e aumentar a minha resistência até ser assim um perfeito à prova de amor para que a tal condensação lacrimejante nunca mais caia e me estrague as engrenagens só por te ver, ali, à minha espera dentro do carro.