26 de julho de 2009

Batalha Naval

Da única vez em que estive internado no Hospital havia a Isabel.
Entrou na minha segunda noite por causa de uma doença qualquer que já não sei qual era. Sempre com um sorriso nos lábios mesmo quando dormia. No dia seguinte continuava o sorriso mas desta vez desperto, fugidio com o meu olhar como se os meus olhos fossem pés que faziam barulhos no chão do bosque e ela uma borboleta ou um colibri.
Começamos a falar através de um oceano de faz-de-conta recriado numa folha de linhas com quadriculas desenhadas à mão. Nós ali presos nas camas numa enfermaria com janelas que davam para gabinetes mas a navegar furiosamente e a trocar tiros a querer afundar porta-aviões e submarinos.
E foi essa marinheira que me mostrou que pronto, era aquilo que eu queria para a vida toda.
À noite uma lição de cumplicidade depois da batalha. Sempre que uma enfermeira passava, com os passos pesados de um soldado, ela que agora era o nosso inimigo, calavamo-nos com um sorriso parvo para depois recomeçar a conversa no ponto onde ficou ou num novo lugar. Ela até fechava os olhos para ser credível. Eu não conseguia. Observava-a como na noite anterior, agora com ainda mais fascínio.
E assim se passaram 3 ou 4 dias, já não sei, entre batalhas no mar e nos puzzles com os apitos da máquina de soro dela que me afligia porque via series de médicos e apitos nunca eram bom agoiro.
Passados anos ainda me lembro dela e como fiquei deprimido e choroso na tarde em que lhe deram alta
- Agora que estavas a ficar melhor é que tens dores?
e eu com vergonha não dizia a verdade e deixava-me chorar enquanto a enfermeira me fazia massagens com uma daquelas pomadas frias ao toque. No dia seguinte saí e nunca mais entrei na enfermaria ou estive internado.
Agora, como nestes últimos anos, tenho por ela o mesmo fascínio reservado que se deve ter com os famosos que admiramos. Uma enorme curiosidade de conversar e saber o que faz mas medo que, ao chegar ao encontro, tudo não passe de uma ilusão e que a imagem que temos da pessoa seja falsa ou só tivesse sido verdadeira naquela altura de eterna novidade.
Sendo assim tenho-a cá dentro como batalhadora furiosa e conversadora curiosa de face luminosa de dia e sorriso lunar à noite. A pequena Isabel que apitava de duas em duas horas e que me fez, pela primeira vez, doer de amor.

19 de julho de 2009

O Cofre

Enternece a forma como as pessoas tentam ler peitos. Assim com um estetoscópio como o fazem os médicos mas com a curiosidade e perícia de um assaltante de cofres à espera do click ou lá qual é o som que os cofres fazem no seu interior para que possam dar uma olhada cá dentro.
É por isso que tantas vezes nos lançamos nos braços de outra pessoa como um deprimido crónico o faz ao psicólogo. É a salvação que vem aí e nós queremos que tudo seja simples e processado. Fácil de ler e resolver. A questão é que o nosso peito usa sempre a blindagem mais forte com fechaduras de combinação e chaves impossíveis de copiar. Quem está de fora, ainda a tentar abrir o nosso cofre, dificilmente acredita que não sabemos onde guardamos a chave. A combinação foi mudada para um código que nunca esqueceríamos mas esquecemos.
Aí entra a análise da retina. Muita gente pode saber a combinação; a chave pode ter sido roubada ou perdida mas os olhos, se forem os olhos certos, abrem o peito sem resistência.
E não abre. A portinha que chega para o coração se expor não abre e aquela pessoa que se pensava ser a salvação não é nada. É mais uma curiosa a olhar para uma porta que, incapaz de lidar com o que encontraria lá dentro, não merece que ela se abra.
Esta semana voltou a mim um forte sentimento de orgulho e felicidade, fruto de umas tantas memórias que por estarem lá muito para trás (tenho de contar anos com dedos das mãos para perceber quanto) até já se vão esquecendo. Memórias de um tempo em que a porta não abriu nem a martelo e durante o qual o conteúdo foi crescendo em brilho em vez de mirrar com a falta de ar.
E noutro dia noutro sítio, com outros olhos a tentarem sem pressa, a porta lá se abriu sem resistência. Lá dentro um coração fresco acabado de colher e espaço suficiente para outro morar confortável.

12 de julho de 2009

A Sílvia, a Diana e a Cláudia

São três mulheres da minha vida e, embora tenha conhecido duas Dianas, uma Sílvia e uma Cláudia, as do título nem sei quem são.
A Sílvia morava perto do centro de saúde mais próximo de minha casa e era familiar de um tipo que tinha um armazém lá perto. A Diana passa todos os dias perto de uma rua de acesso ao centro comercial Parque Nascente. A Cláudia apanhava algumas vezes camionetas e sabia o que Je t'aime quer dizer. Estas três senhoras morreram recentemente.
Não sei se já morreram efectivamente mas, para mim, morreram porque já não estão no pedaço de parede ou chão que as imortalizava. A inscrição "Cláudia Je T'aime" foi pintada por cima quando se fizeram as obras na garagem onde chegam as camionetas vindas de e idas para Lisboa. A inscrição "Diana Adoro-te!" foi obliterada pela passagem dos camiões das obras que rasgarão a linha de metro para Gondomar.
A Sílvia, a mais antiga destas mulheres, vivia numa parede verde em letras amarelas colocadas mesmo por cima da entrada da garagem dos tais armazéns. Encontrou o seu fim depois da venda do edifício a alguém que julga que uma fachada canelada de alumínio é mais bonita que um nome de mulher.
Imagino se quem as matou tentou descobrir quem elas eram para lhes pedir desculpa pela profanação da homenagem e do nome ou se fez como um cirurgião que errou num corte de bisturi e passou o pelouro das desculpas para uma enfermeira imigrante de quem nem sequer sabe o nome.
Que lhe dê o nome de Sílvia, Diana ou Cláudia mesmo que ela discuta que no país dela não existem esses nomes e ao menos que durma por lhes ter dado uma cara.

5 de julho de 2009

1/2

Esta semana, no dia 2 de Julho, passou-se uma data que passa (passando o pleonasmo de tantos passares e passados) ao lado da maioria das pessoas. Este é o centésimo octagésimo terceiro dia do ano. É o meio do ano.
Há para trás cento e oitenta e dois dias e restam outros cento e oitenta e dois para diante. São estas datas que nos obrigam a parar e reflectir sobre o que se passou e quantas das resoluções de ano novo já nos encarregamos de resolver.
A nossa vida, felizmente infelizmente felizmente infelizmente não tem backups como os que fazemos antes de formatar o disco do computador. Fazemos borrada e a nossa vida vai para sítio incerto e não há técnico de informática que nos devolva o que perdemos. Este meu meio ano foi para parte incerta (que é onde está sempre na realidade) no plano afectivo e vai caminhando para a incerteza no plano profissional. Em ambos não sinto a necessidade de backups embora um fiozinho de ligação à terra, a haver, daria uma segurança que conforta.
Grande parte deste meio ano foi passada num leve sofrimento, que não explicarei porque nunca se sofre sozinho, sempre interceptado por momentos de felicidade e sorrisos cumplices que se sobrepunham sempre aos tempos sombrios. Na vida, como nos computadores, um reiniciar ainda resolve muitos problemas e não, não é preciso ser à bruta. Tendo paciência a nossa janela reinicia sem que uma brisa deixe de entrar e a anterior brisa, de aroma diferente, esvoaça para outra janela sem partir os nossos vidros.
Agora vive-se a sorrir, a passear, a comer pêlos de gata e a ressonar (nada que não se resolva com uma cotovelada, mais uma vez, como com os computadores) sem peso nos ombros mas imensa curiosidade assustada de ver se a tempestade deve ser agarrada ou não.
Profissionalmente continuo nesta carreira de cantor de rua figurado. Canto com talento e esforço mas para já nenhum olheiro das editoras se aproximou e como sou orgulhoso, arrogante e sei o que valho o chapéu das esmolas fica na cabeça mesmo que os transeuntes fiquem tontos à procura de onde meter a moedinha como se eu fosse uma máquina de café.
O meu meio ano passou rápido mas deixou marcas lentas, como estrias que ficam depois de uma dieta milagreira. E as estrias, como as rugas, sempre me pareceram mais sinais de coragem e viagem do que imperfeições a combater.
E hoje, até já falta menos de metade para o final do ano.