25 de março de 2012

A minha casa

Podias nem ter telhado ou paredes onde o assentar, podias não ter soalho que não ilustrasse as paredes nem tapasse as fundações. Tu podias não conseguir tapar as tuas fundações e canalizações, podias ter os fios eléctricos, os cabos de comunicações e até as perigosas condutas do gás completamente à mostra. Podias ser assim e no entanto serias mais estrutura e casa para mim do que todas aquelas que me oferecem sólidas moradias com garagem e jardim frontal.
Por isso haverá sempre uma estrada, ainda que mal alumiada, que leva à tua porta mesmo quando a tua frágil caixilharia não suporta uma porta. Serás sempre a minha casa e eu caminharei até ti, na pequena esperança secreta de um dia poder levar um camião cheio de materiais e ferramentas para te construir (de dentro para fora ou de fora para dentro, pouco importa) e te colocar um numero de porta e uma residência oficial, onde receber contas e cartas de amigos a viajar fosse o nosso hábito.
Tenho por ti a fé que se tem numa casa de aldeia por saber que embora não te habite diariamente preciso de ti para que a minha identidade não se perca e eu tenha sempre um local, uma pessoa, tu, que seja testemunha de quem eu sou.

18 de março de 2012

Amarelecer

Se forem vasculhar nas traseiras dos meus livros está lá um disco embrulhado em papel amarelo. O disco ainda tocará, julgo eu, como se o tivesse comprado ontem à tarde mas o papel, naquele orgulho mate que só o papel de embrulho tem, está de um amarelo tóxico que o tempo lhe trouxe naquela secura de ter perdido a sua razão de ser que é a de repousar no chão, rasgado após mostrar o que ocultava.
É só papel, sim, tal como lá dentro é só um disco, álbum, CD do meu artista preferido que escolheu, para gravar uns videoclips, um sitio onde uma vez estivemos juntos, aninhados para não bater com a cabeça no telhado.
Ando por aí a dizer que o tempo não traz velhice nem infelicidade. Apenas traz o amarelo. Viajam pelo ar uns amarelos anónimos que o tempo transporta e que nos cansam. Ficamos quebradiços e pálidos como o papel do embrulho que não lhe dei e perdemos o sentido de ser. O papel não a chegou a fazer sorrir, nem este disco que tenho ali escondido e que nunca lhe entreguei.
Às vezes perco-me na tristeza e no niilismo e fico parado a pensar e a sentir (que é o que se faz às coisas tristes, empurram-se para o fundo de nós, para a difícil digestão dos amores que partem e vão ser amores para outros lados). Não sei se o disco que por ali anda a amarelecer lhe fez falta. Agora que ela anda tão luminosa pelas ruas da cidade onde ainda habito e para onde ela me puxou será que lhe fez alguma falta a cor da minha música?
Fico por aqui a sentir e a pensar (que é o que se faz ao que se ama) e em mim cai uma camada de amarelo como se o pó de centenas de anos fosse minha comida e bebida. Ouço o disco que não lhe dei e é como se nem estivesse cá, tal é o vazio e a vaga de emoção que me deixa para nunca mais regressar.

11 de março de 2012

À minha duna

O meu melhor só me surgia quando estava triste. Era um facto tão meu quanto o meu nome que nos momentos de maior amargura a fertilidade de palavras aumentava, as ideias deixavam os meus dedos e marcavam as folhas daquele papel especial que o meu caderno tinha.
Depois vieste e mostraste-me que também com felicidade se consegue ser normal e caloroso. Contigo aprendi que a fertilidade depende das horas de sol que se coloca na face, nos braços e nos dedos. As minhas palavras saíam luminosas porque tu raiavas em mim com essa tua bondade e generosidade. Os meus dedos como folhas de um girassol a seguirem-te. Mas como é típico de todos os sois, e mesmo neste ano de chuvas ausentes, lá te escondeste e segues escondida sem aquecer as minhas palavras.
Sem ti como vão elas crescer?
Agora, já não me lembro do que era ser triste mas também já não te consigo apontar no calendário quando foi a última vez que sorri. Estou aqui sem tristeza e sem felicidade e sem as minhas palavras.
Estou sem ti.
Vou encher estes buracos que as coisas que me fazem falta deixaram com sono e palavras de outros, com passeios avulsos e o espanto dos dias que nascem sem que eu lhes peça. O buraco que deixaste, aquele maior e mais saliente (e do qual não falo a ninguém) fica aqui à espera que regresses com o vento como uma duna que demora a chegar mas que se ergue com calor e solidez. Se voltasses e te agregasses no meu peito criavas um processo contrário à erosão e fechavas o tal buraco com uma pedra rubra qualquer que me devolveria as palavras que tanta falta me fazem.
Tu, a minha duna!

Estas colocadas acima eram as últimas palavras que sabia escrever e tinha aqui reservadas para uma urgência, lê como se fossem sussurradas, preciosas como uma velharia, amostras de fragilidade e resiliência.
Guardei as minhas últimas palavras para ti, e que tal se voltasses?