14 de janeiro de 2012

Caminhos do Desejo

Disseram-me um dia que no Japão os jardins não têm caminhos.
Têm relvados, arbustos, canteiros, fontes e tudo o que é de esperar num jardim europeu mas caminhos nada. Só após a inauguração do jardim é que começam a surgir os primeiros sinais de formas eficazes de atravessar o dito jardim. Lentamente surgem traços como uma teia ou um jogo de correspondências como os que fazíamos na escola primária. A essas uniões que unem pontos opostos que, por alguma razão, interessaram a várias pessoas o suficiente para desbravarem relvado virgem dá-se o nome de caminhos do desejo.
Caminhos do desejo porque foram as pessoas, através do seu desejo de unir dois locais distintos que trilharam a rota. Dizem-me que após essa fase de experimentação o jardim volta a fechar para se proceder à pavimentação dos tais caminhos.
Quando me disseram isso fiquei a pensar se connosco também não seria assim. Dois grupos juntam-se e depressa se desbravam os caminhos necessários a juntar o A com o 2 ou o B com o 4 como nas fichas da escola. Depois o C e o 1 apaixonam-se e formam uma avenida principal como temos no Palácio de Cristal a Avenida das Tílias.
O jardim que todas estas pessoas são fecha-se ocasionalmente para repavimentar a amizade e o amor com estradas em que a brita é substituída pela ternura. Não há nada que compacte o carinho como a ausência e o subsequente reencontro.
Nestes caminhos do desejo que nos unem não vejo obstáculos nem saudades inconciliáveis, para todas aquelas vezes que a relva mal cortada parece proibir os abraços calquemos com mais força para amarelecer de vergonha o tempo e as ocupações que nos afastam. E sempre que um buraco te torça os tornozelos e te faça uma mancha esverdeada nos joelhos eu estarei lá para te fazer rir da parvoíce de caíres depois de te levantar e te dar um beijo que, se não estavas, te pôs logo boa.

8 de janeiro de 2012

Sorte

No mundo todo há quatro tipos como eu. A sério. Procurem na internet quem são os quatro jogadores de poker mais bem sucedidos e vai estar lá o meu nome. De todos eu sou o que tenho mais sorte mas não sou o melhor. Eles leem mentes através de comportamentos reflexos dos outros jogadores e calculam probabilidades de determinada carta sair em determinada altura. A mim simplesmente saem as cartas certas na altura certa.
Os alcoólicos procuram no final de cada copo uma família, o amor perdido, o dinheiro necessário para endireitar o negócio da família. Como no final do copo há nada, só secura e abandono, reforça-se a dose à espera que no final do próximo apareça por magia o final da dor.
Estou ainda para conhecer um bêbedo que beba porque gosta de beber.
O mesmo acontece com o jogo. A um não viciado pode parecer que nos estamos a divertir. Não estamos. Estamos à espera que as coisas comecem a correr mal. Estamos à espera de perder vinte milhões de dólares numa só mão e reencontrar nesse final da sorte ao jogo o início da sorte no resto. A tal família, o tal amor, em alguns a saúde. Dinheiro, felizmente, é preocupação que já não temos.
Quando a minha mãe se apercebeu que eu transportava o gene do pai dela, que nem conheci, benzeu-se três vezes. Contou-me que os homens da família tinham todos essa boa fortuna de fazer fortuna sem esforço. Ela estava convencida que até príncipes tínhamos na nossa genealogia mas eu ignorei até chegar ao secundário e ganhar sempre à sueca.
Nas noites familiares ao Dominó.
Na faculdade apostas desportivas.
Qualquer coisa que envolva aleatoriedade eu transformo em dinheiro.
Pelos vistos o gene não se transmite a mulheres. Elas ao invés têm sorte ao amor, razão pela qual a minha mãe casou cedo, foi feliz e teve filhos cedo mas foi sempre pobre. O meu pai, das melhores pessoas que este planeta já aqueceu, morreu cedo traído pelo seu próprio gene defeituoso herdado sabe-se lá de onde.
Às vezes calham-me umas tantas mãos seguidas em que perco e penso que acabou, ganhei dinheiro que baste para três vidas de cem anos, chegou a hora de partilhar a minha pérola, que nasceu aqui um dia mas que eu por estar só, tão só, não sei a quem deixar.
Ocorre-me que a sorte me tenha abandonado naquelas ocasiões seguidas em que as mãos não prestam e as cartas não são favoráveis. Mas lá ela volta, pacientemente esteve à espera que eu acreditasse na sua partida para depois me surpreender e dizer de novo um olá que me sabe azedo.
Aceito o que ela me dá, até me deixar vai ser sempre assim, não sei como lhe fugir. Ela sorri e eu vou a jogo.

1 de janeiro de 2012

Bissexto

No fundo das escadas havia o quadro eléctrico, eu lembro-me.
A electricidade estática fazia o teu cabelo elevar-se no ar e eu, preocupado com o teu penteado, passei a dominá-lo com as mãos juntas, todos os dias. Na sombra da janela da porta, quando saíamos à noite, devia parecer aos vizinhos que eu te estava a esganar.
Penso nisto enquanto mexo num par de fios desligados da serie de luzes que usamos na árvore de Natal deste ano. Uma amostra de árvore para uma amostra de apartamento onde vivemos eu, tu e dois vasos com um girassol cada um. Vive também uma cama feita e um sofá para três numa sala onde todos convivemos com o tapete, com as cortinas e com uma televisão pousada numa estante adaptada que também vive cá.
Adoptamos há uns tempos um gato e uns livros. Do gato nunca mais soubemos e os livros foram morrendo das feridas que as unhas do gato deixaram na sua lombada, desfigurados como leprosos. Perderam os títulos e os autores com excepção do livro de poesia que te ofereci no ano em que nos conhecemos.
Era um ano bissexto e passar esse ano contigo foi como aquela hora que se dorme mais quando a hora muda sem pensar na ocasião em que a hora recua. Ganhamos um dia ao nosso tempo e ao aproveitá-lo nunca mais recuamos.
Hoje, podemos simplesmente ir ver como cai a chuva a cem quilómetros daqui, podemos ir verificar se a estátua daquela terra onde fazem a feira de enchidos está limpa ou dar a nossa opinião sobre o relvado daquele mosteiro do século XVII que há perto da casa do teu bisavô. Hoje aperto-te o cabelo como fazia antes de arranjarem o quadro eléctrico e beijo-te, como se te estivesse a asfixiar com as mãos e os lábios.
Os vizinhos devem achar que somos bizarros. Espero que sim.