1 de janeiro de 2012

Bissexto

No fundo das escadas havia o quadro eléctrico, eu lembro-me.
A electricidade estática fazia o teu cabelo elevar-se no ar e eu, preocupado com o teu penteado, passei a dominá-lo com as mãos juntas, todos os dias. Na sombra da janela da porta, quando saíamos à noite, devia parecer aos vizinhos que eu te estava a esganar.
Penso nisto enquanto mexo num par de fios desligados da serie de luzes que usamos na árvore de Natal deste ano. Uma amostra de árvore para uma amostra de apartamento onde vivemos eu, tu e dois vasos com um girassol cada um. Vive também uma cama feita e um sofá para três numa sala onde todos convivemos com o tapete, com as cortinas e com uma televisão pousada numa estante adaptada que também vive cá.
Adoptamos há uns tempos um gato e uns livros. Do gato nunca mais soubemos e os livros foram morrendo das feridas que as unhas do gato deixaram na sua lombada, desfigurados como leprosos. Perderam os títulos e os autores com excepção do livro de poesia que te ofereci no ano em que nos conhecemos.
Era um ano bissexto e passar esse ano contigo foi como aquela hora que se dorme mais quando a hora muda sem pensar na ocasião em que a hora recua. Ganhamos um dia ao nosso tempo e ao aproveitá-lo nunca mais recuamos.
Hoje, podemos simplesmente ir ver como cai a chuva a cem quilómetros daqui, podemos ir verificar se a estátua daquela terra onde fazem a feira de enchidos está limpa ou dar a nossa opinião sobre o relvado daquele mosteiro do século XVII que há perto da casa do teu bisavô. Hoje aperto-te o cabelo como fazia antes de arranjarem o quadro eléctrico e beijo-te, como se te estivesse a asfixiar com as mãos e os lábios.
Os vizinhos devem achar que somos bizarros. Espero que sim.

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