19 de dezembro de 2010

Só tu

É extremamente difícil seguir a minha vida a ouvir a tua voz a dizer palavras. Imaginar como seriam certas expressões ditas na tua doçura. Não ter à despedida a despedida com o meu nome a acentuar o carinho.
É morrer cinco vezes ao dia ter agora de nunca mais dizer olá aos teus caracois pela manhã, deixar sós os teus olhos amendoados e partir dessa cama (onde nunca me deitei), da mesa (que nunca vi) sem pequeno almoço e do cabide da porta (onde os meus casacos pesados nunca repousaram) sem a missiva que evidentemente deixaria onde te diria
-Só tu..
se alguma vez tivesse oportunidade de te deixar para aí cartas assim.
Ando preocupado comigo mas não espero que te preocupes tu porque, em boa verdade, poucas vezes fora das necessárias trocas fortuítas de importâncias deves ter pensado em mim. Pouco sós devem estar neste momentos os teus olhos, talvez fechados ainda por umas palpebras que alguém beijou antes de adormeceres. Ou então estás acordada a ver a pessoa que te preenche a cama, a tomar o vosso pequeno almoço e lá ao fundo, no cabide, os casacos e bonés dele.
Um dia disseste-me
-Só tu.
e eu fiquei feliz por achares que naquele momento e daquela forma só eu.
Agora eu, só, me deixo aqui sem medo de ti nem dos teus cabelos, nu se pudesse à frente dos teus olhos tão grandes e tão redondos e tão amendoados. A passar ou parado. Podia até ser num daqueles momentos em que te apanho a olhar para mim.
Um dia poderia ser que te apanhasse esse olhar e to obrigasse a fixar em mim com uma careta ou um carinho. Poderia fechar-te as pálpebras com um beijo e dizer-te
-Só tu...

14 de novembro de 2010

X

Uma vez disse-te que se inspirar fundo fizesse tão bem como diziam, os humanos teriam evoluído para só inspirarem fundo. Cada um dos nossos milhares de movimentos respiratórios diários seriam longas inspirações. Tu, não habituada a teres de te explicar na minha língua dizias que não sabias falar comigo.
E não sabias mesmo. Dei-te emprego em 2005 por seres a reveladora de fotografias mais talentosa que tinha visto. As tuas fotografias não eram nada de especial mas a claridade, a focagem, os jogos de luzes na tua pós-produção eram uma arte em si própria. Que fosses imigrante ilegal era um pormenor que estava disposto a ignorar.
Depois havia o teu cabelo. Nas poucas conversas fluídas que tivemos contaste-me que na tua terra havia muitas loiras altas portanto o teu cabelo negro e a tua estatura mediana eram vistos como exóticos. Portugal era um bom país, havia muitas mulheres como tu.
Mas a questão é que não havia. Tal como ninguém - nem mesmo eu - conseguia com que uma fotografia ganhasse aquela fineza e detalhe só com o uso de químicos ninguém tinha esse teu cabelo. Essa tua graça.
Eu sou um amante desajeitado. Tento atrair por antagonismos. Discutíamos muito e eu gozava o facto de não entenderes o fascínio por poesia, mesmo depois de teres lido, ou assim o julgo, um livro traduzido que eu te dei e que me deu a mim imenso trabalho a encontrar. Dizias que a vida era como as tuas fotografias (dizias sempre tuas fotografias) uma coisa acontece, há um intermediário, a coisa modifica-se.
Eu gozava-te porque dizia que o amor era um intermediário, a poesia outro, a cor dos teus olhos era só mais um, mas esta terceira parte tu não entendias. Perguntava-te se o yoga não era para ti uma experiência poética e tu só me dizias que o yoga resumia-se a respirar fundo.
Preocupava-me esse teu niilismo bem como o final da fotografia de película. Comprei uma impressora com um quinto do teu tamanho e tu um dia tiveste a bondade de me dizer adeus, beijo na cara, mão no braço. O cabelo preso para não me prenderes a mim nele. Tanta a bondade e tanta a poesia que era preciso alguém que nela não acreditasse para a transportar com tanta leveza.
No outro dia no correio estava um mapa de uma cidade do teu país, um X marcava uma rua.
"Aqui. Ainda fotografia química. Vem cá."
Ando aqui a congelar uma lágrima para que ela não caia no mapa e borrate o X. Todos os dias tomo o pequeno-almoço e olho para o mapa.
Lavo a loiça, respiro fundo, vou trabalhar.

3 de outubro de 2010

Outra bebida

Tenho aqui umas tantas profanidades guardadas para te contar. Coisas que me apareceram de noite e me tiraram da cama, levantaram-me e serviram-me uma porção de leite com chocolate (não bebo uísque desde que te convidei e tu não vieste).
Não sei como é com as meninas mas, com os rapazes, das feridas nascem medalhas. No dia seguinte ao mais espampanante tombo de bicicleta vamos para a escola de calções e manga curta. O mundo fica a saber que somos valentes. Fomos, vimos e doemos.
Chorar? Isso é para bebés porque já somos meninos grandes.
Que faço eu à ferida que tu me deixaste? É que na vida adulta os rapazes tornam-se homens e esses só ganham medalhas se exibirem ao peito as feridas que espetaram nos peitos de umas tantas mulheres. Não estamos preparados para o contrário.
Tentei inventar uma intentona a ti. Recusaste um convite com segundas intenções mais ou menos evidentes que detectaste e deflectiste.
Sim, o leite com chocolate às quatro da manhã põe-me bastante palavroso.
No fundo as profanidades que me acordaram eram simplesmente o meu desejo de te oferecer o meu braço para te aconchegares e o meu colo para pores os pés enquanto deitada no meu sofá estudavas a lição para o dia seguinte. Este mesmo sofá onde me sento agora e ingiro o último gole de chocolate enquanto digiro o remorso de não te ter pegado logo nos lábios e colado-os aos meus como um dia outro te fará desenvergonhadamente para te levar a concretizar ponto a ponto os meus sonhos. Num outro sofá, com outra bebida.

5 de setembro de 2010

Mais ou menos

À memória da Susana, julgo ser esse o nome dela, que tinha os lábios mais botticellianos e os dentes mais alinhados do meu grupo de conhecimentos falo dos infelizes. Dedico-o à memória dela não por ela ter morrido literalmente, julgo isso não ter acontecido, mas sim porque uma vez casada com um idiota a mulher morre.
É a maior aflição do homem sensível a excessiva contemplação das desgraças da vida e como as mãos, braços e pernas são pequenas demais para as resolver. Nos homens inteligentes a maior desgraça é não haver tempo para amar e ler, amar e ver um filme, amar e comer uma boa refeição. Um homem inteligente ou é bom numa coisa ou noutra. A consciência de ser médio em ambas resulta em aflições várias.
Estas são as desculpas dos Homens a sério. Os sensíveis e inteligentes.
Um bronco não tem desculpa para se sentir miserável e muito menos tem o direito de reclamar para si um par, feminino ou masculino, para infernizar e menorizar de forma a se sentir melhor. A Susana, que a terra lhe seja leve como hélio, deixou-se morrer coitada. Conheceu o seu carrasco num dia qualquer e deixou-se anilhar.
Coitada.
Como escreveu Adam Langer, em todos os bares de toda as cidades de todos os países em todos os continentes desde o início dos tempos há um idiota deprimido que traz agarrada ao seu braço uma mulher impressionante e delicada e todo o bar pára a olhar para o casal a imaginar como uma mulher daquelas foi acabar com um idiota daqueles.
Como foste parar aos braços desse idiota Susana, se é mesmo esse o teu nome, como?
De qualquer das formas não me constou que o restaurante onde te vi tivesse parado, nem ninguém se apiedou de ti e te resgatou. Talvez por te ver mais ou menos feliz e mais ou menos sorridente e hoje esse ser a média aceite. Mais ou menos amor e mais ou menos felicidade.
Essa que é a aflição do homem romântico: O mais ou menos coração, mais ou menos emoção. Mais ou menos fidelidade.

4 de julho de 2010

Como as sardinhas

Era um homem largo, portentoso. Com o olhar azul aberto como um horizonte e uma malinha que chocalhava de cada vez que se ajeitava no banco do autocarro para permitir que uma das madames se sentasse. Não que fosse necessário mas o boné divulgava a todos quantos quisessem reparar que estávamos na presença de um homem do mar. NRP Corte Real e uma figurinha do navio de guerra português bordados na frente do boné.
As miúdas demasiado excitadas, mais novas que a sua idade real, que vinham da praia ainda a cheirar a creme e areia a usar roupas que no tempo de juventude do nosso nobre marinheiro seriam proibidas. Ele com os olhos nelas, parecidas com as dezenas de sereias que deixou por aí, na costa africana, mulatas e pretas, belas e a cheirar a suor e praia.
Às catraias de hoje ele comia-as, perdão, bebia-as com os olhos. Mais suculentas que o punhado de peixes que trazia no balde tapado. Só aquelas três moças deixavam-no mais vergado do que o dia inteiro de faina rochosa ao sol. Nada incomoda mais um homem que os pedaços de juventude que deixam por aí e aos marinheiros, em cada levantar de ancora, é um naco que lhes sai e fica enterrado na areia do fundo do mar.
Só aquelas três moças foram como três tiros de morteiro da fragata que o nosso herói apanhou naqueles olhos tão largos e tão cor de mar. Elas foram e ficou a serenidade. Haverá certamente mais marés e sereias nunca são boas conselheiras.

27 de junho de 2010

Apontar

Todos os rapazes sabem que nas festas conhecem raparigas mas é preciso chegar à vida adulta para perceber que nas festas se conhecem mulheres. E durante algum tempo essas mulheres, belas que são, apenas existem no gémeo da perna discretamente exposta, no promissor decote em V ou nas pupilas dum par de olhos azuis que dilatavam a cada pulsar das luzes. Ora, a Inês era isso tudo e mais umas centenas de caracóis castanhos que me apontava como se fossem dedos indicadores.
Como transformar uma perna, o fenomenal decote, as pupilas inadvertidamente exageradas ou os cabelos em tema de conversa é outra das coisas que só na vida adulta se entende. E faz-se, com maior ou menor dificuldade até porque o sorriso da Inês não podia ser postiço, era largo demais, com aquela doçura que só os sorrisos de dentes tortos têm. Uma aproximação lenta, um
-Olá, boa noite.
a resposta envergonhada e os tais dentes enviesados a filtrarem um
-Olá
que mal conseguia vencer a música.
O resto, como escrevem os jornalistas quando querem encurtar os artigos, é história. Mais sorrisos, toques de ombro, danças (africanas, latinas e outras), bebidas e a confissão súbita
-Desculpa, tenho de ir embora.
E foi. Foste. Inês.
Tu que me poderias apontar o que quisesses: uma mão cheia de caracóis, um desses teus olhares relaxados que reduziam a pupila e aumentavam a íris azul como água de piscina, os lábios, mãos, pés ou um mamilo, um prego para furar a parede quando pendurássemos uma das minhas fotografias ou os teus diplomas na nossa parede preferida da nossa casa.
De tantas coisas que podias apontar e nem o número deixaste, nem o teu nome inteiro para te procurar à minha maneira. Nada. Só o nome Inês, a perna e o decote, os dentes infantis e o olhar como um anel fino de prata.
Há coisas que só descobrimos na vida adulta, uma delas é que nunca deixamos de permitir que façam de nós uns miúdos.

6 de junho de 2010

Vou comprar umas calças vermelhas

É injusto que apareças assim no meu autocarro, tu com mais sete anos do que tinhas quando reprovaste no décimo primeiro e eu que esperei por ti até ao fim da faculdade que tive de ir tirar às ilhas. Tão burros nós éramos meu deus, as notas e os professores concordavam e eu passei a acreditar que não seria nada nem ninguém como o meu pai me dizia quando eu era pequeno. Esperei por ti num lugar ao qual não se chega de autocarro e só agora fica a menos de vinte contos, desculpa, cem euros a viagem de avião. Não contava que num momento de turbulência, no voo, claro, tu estivesses lá ao meu lado a fazer conversa de circunstância e de repente
-Vánia? És tu?
e seres mesmo. Não contava com isso. Mas entrares no meu autocarro, sentares à minha frente e brincares com o relógio é que não; agitares o cabelo e o perfume mesmo ali, à distância da grossura de um livro de poesia do meu nariz, era como se fosses de repente uma assistente de bordo ou a única capitã a pilotar aviões da TAP. É injusto que entretanto tenhas aprendido a combinar os sapatos vermelhos com o relógio vermelho que por sua vez brilhava com as leves flores vermelhas que a tua camisa branca aberta até àquele ponto que só as mulheres crescidas sabem qual é. É injusto que as calças de ganga fossem tão bem com o azul dos teus olhos que, raios me partissem se não olhassem para os meus (nem que tivesse de me deitar à tua frente mas havias de olhar!) não me conheceram.
Não foi fuga tua. Tu não me viste absolutamente nada.
É injusto andares agora a aparecer por cá, uma vez hoje e quantas mais no futuro nem sei, eu que me mantive ao teu nível e à espera, eu que derreti a minha média em explicações de um ano que não era o meu e tardes a estudar o que a tua mãe depois nos apanhou e proibiu de estudar e à espera. Eu que ainda hoje não aprendi como se combina uma camisola com um casaco como deve ser, calças de ganga só das muito azuis e muito gastas e o relógio, esse fiel velho, ainda é o mesmo que o meu pai me deu na última vez que achou que eu valia alguma coisa. Mantive-me burro e deselegante para ti e entretanto alguém te ensinou a ser uma mulher. Daquelas que abrem a camisa até aquele ponto que só elas sabem onde fica.

9 de maio de 2010

Janelinha

Já vi vários nomes para aquele buraco da porta por onde se espreita para ver as pessoas que nos batem à porta mas de todos janelinha parece-me ser o mais indicado. A tal janelinha foi desaparecendo porque quase todos vivemos agora em prédios ou moradias com aquele aparelho que empalidece e descolora as pessoas que nos pedem para entrar. Uma porcaria de um telefone de parede que nem sequer mostra cores e que solta um som de tiro sempre que abrimos a porta à tal pessoa que quer entrar. Nunca usei um desses aparelhos porque à frente da minha casa tem um estabelecimento com vidros espelhados que me deixam ver quem me pede para entrar.
E gosto tanto da ideia da janelinha que, ao tirar fotografias, nunca olho para a imagem electrónica em lcd plasmado de não sei quantas polegadas e em vez disso espreito pela janelinha que com umas linhas finas faz um quadrado que enquadra quem eu quero aprisionar. Eu que nunca fui fotografado em condições tiro retratos incríveis porque ninguém está à espera que fotografe. Ao olhar pela janelinha julgam que estou a brincar e não têm tempo de posar um sorriso. A mim nunca fizeram este favor. A mim tiram-me fotos usando aquela luz laranja que nos avisa que vem aí uma foto de flash. Eu, que a posar fico sempre um centímetro pior.
A mim atendem-me sempre com o tal aparelho que desbota e descolora e mal consigo perceber o que me perguntam. Se eu te atirar uma pedrinha para a janelinha prometes não te assustar e abrires-me a porta?
Levo cores comigo, prometo.

2 de maio de 2010

Cliché

Fiquei há pouco tempo a saber que clichés e, mais etimologicamente evidente, estereótipos eram conjuntos de letras ou frases que apareciam várias vezes juntos em livros e jornais portanto, isto no tempo em que as impressoras aplicavam mesmo pressão sobre a folha para marcar as letras.
Hoje em dia ambas as palavras perderam este significado e trazem consigo o peso do mofo e da inevitabilidade. Uma pessoa fugir à norma é contra-corrente mas, simultaneamente, ser rebelde por sistema como diz a minha caríssima Mitó numa música dos Naifa é um enorme cliché. Estar apaixonado é, com grande tristeza minha, um enorme cliché.
Claro, sim eu sei, naqueles momentos não pensamos bem nisso. Só nós no mundo estamos a sentir algo do género. O tempo pára e tudo mais. Eu sei, a sério, estive lá. Fiz isso. Falem com alguém que conhecem só para ver se não lhes sucedeu o mesmo. Por esta altura as nossas experiências foram mais ou menos as mesmas que dos outros todos. Lá está o raio do cliché.
O que não é cliché são todas as coisas que se fizeram entretanto. O que fiz na manhã após ter conhecido o meu amor não é vulgar. Muito menos o será o local onde demos o nosso primeiro beijo, nevoeiro e orvalho daqueles não há mais nenhuma vez nos próximos dez anos.
Mas no fundo, falar só desses momentos kodak é já de si um cliché. Esconder as melhores partes desse amor porque, como dizem os visionários filósofos de bairro, o melhor é para se guardar é um cliché. E não será isso uma óptima notícia?
Se o amor se tornar um cliché, sem se tornar uma vírgula ou o aroma volátil de um postal que de se abrir demasiadas vezes se perdeu, todos temos a ganhar.
Se o amor for vulgar na proliferação mas não no desgaste das línguas e do desleixo abriremos todos uma gaveta, como calculo que os senhores das impressoras o faziam, onde guardamos a nossa palavra favorita, sempre brilhante e polida pronta a ser usada.

11 de abril de 2010

Metropolitano

É com demasiado desprezo que se olham e olham para todos e para o exterior. É com o nariz levantado em desafio e um leve esgar de nojo que ouvem. Não cheguei a perceber porquê mas os lisboetas mais novos, que não são nem ingénuos nem sábios porque já passaram a idade da simples estupidez sem ainda terem chegado à idade da calma e contemplação, são bastante ingratos. Para um portuense descomplexado, que já passou a idade da estupidez e tacteia cada vez mais na contemplação da diversidade e da simplicidade é confuso como numa cidade como Lisboa se consegue ser triste. Há ruas iluminadas e casas amarelas. Há velhas nas janelas e cães a ver o sol não aos quadrados mas aos arabescos floreados de ferro forjado nas varandas. Há a tal luz de que eles, os lisboetas sábios, falam e que só nos tiram as palavras quando cá chegamos e, depois de regressados "lá acima", há aquele intangível indizível que nos obriga a recomendar a visita.
As paixões não se explicam. Ou há ou não há. Por isso gostar de Lisboa quando se cresceu num sítio onde se cantava
NÓS SÓ QUEREMOS LISBOA ÁRDER
de cada vez que se vergavam os tais poderes estabelecidos é um mistério. As paixões surgem como nas bússolas avariadas quando a agulha se vira para a direcção errada mostrando-nos um sítio que não o destinado e que surpreende. Agulhas de bússola ou nos carris do metropolitano. Dedos em riste num mapa de uma montanha ou de uma cidade. Qual a diferença na realidade?
E as lisboetas? Como surge a facilidade de as levar a sério na sua classe e excentricidade? Nas lojas e nos fados, porque somos magnetizados do positivismo do nosso peito ao positivismo das montras e ondas sonoras? Como é que nesta terra os pólos iguais não se repelem?
Por isso aos miúdos com cara de nojo e manias de grandeza, naquela fase etária na qual já não têm vergonha e começam a ter confiança, cresçam. E rápido. Percebam porque a gente do mundo se junta nas grandes cidades e porque no regresso não têm nada de negativo a indicar tal como eu, no meu regresso "lá acima", antigo, mui nobre, sempre leal e invicto, levo comigo o sol e os azulejos, as velhas nas janelas e o cheiro do óleo no metropolitano. Logo eu que gosto tanto da palavra metropolitano.

4 de abril de 2010

Slow

Se pudesse cobria-te o ombro com a mão, como fiz naquele dia em que dançamos e voltaria a surpreender-me com o tamanho das tuas costelas e com o facto de teres um corpete por baixo da camisola. Já não tenho idade para me deixar enganar por sapatos e nas tuas saias curtas podia já ter percebido que as tuas pernas não eram tão longas quanto julgava.
Já o meu pai me dizia que era preciso dançar com uma moça, eu não uso a palavra moça mas ele sim, para a conhecer. Se nos olhar nos olhos é bom, se passar o tempo todo a falar é mau. Se se chegar a nós é óptimo, se tentar conduzir a dança é péssimo. Como esperava tu olhaste para mim o tempo todo, esse olhar doce que eu defendia quando diziam que tu eras arrogante com a sua cor ora azeitona ora carvalho conforme a música e o raio do sol que de vez em quando nos colava ao chão.
Se me deixasses cobria-te o joelho, com a mão ou com a boca, como pensava enquanto a música terminava e a dança se separava sem que tu deixasses de me polir esse olhar, envernizado agora pelo carinho, mais carvalho que azeitona.
-Temos de fazer isto mais vezes
disse eu, ao que tu respondeste
-Daqui a dez minutos vai passar um slow e nunca é tarde demais para voltar aos tempos do secundário
Eu sorri sem pensar que passados dez minutos, quinze minutos, vinte minutos os slows vinham e iam e tu não chegavas. Nem som nem imagem nem nada. Deixaste apenas um som no telemóvel que na imagem mostrava "tive de ir embora mais cedo, desculpa. prometo um slow. bjs"
Se tu me deixasses, agora que já passou tanto tempo desde que prometeste, dançava contigo. Cobria-te o ombro e as costas, os joelhos e o peito. Se me permitires eu conduzo e deixo-te até escolher a música.

28 de março de 2010

Ao balcão

Dizes
-Já não há cafés como este.
Foi o início da nossa conversa. Eu à espera do meu prego no pão e tu a dizer-me que o café era bom. E quando respondi
-Há este
achaste piada da mesma forma nervosa como abriste a conversa.
Da primeira vez que te trouxe cá nem conseguias chegar ao pedal, chamemos-lhe assim, do banco. Dizia-te eu
-Os homens sentam-se ao balcão
e tu todo orgulhoso à espera da tua primeira coca-cola.
Temos uns pais excelentes mas eu tive a tua idade mais recentemente. Fiz merda há só uns anos atrás. E, ao contrário dos pais, posso admitir as vezes que fiz borrada.
Espero pelo prego e tu a olhar vagamente para o teu bolo de chocolate. Noutra ocasião ditar-te-ia as regras de comer ao balcão. Regras que não existem e que eu inventava na hora para te chamar criança. Uma dessas regras é, definitivamente, não comer nada doce à hora de refeição ao balcão de um café.
Fui eu que te ensinei a jogar bilhar e que te disse que fumar não te fazia parecer mais fixe. Jogar bilhar sim. Ensinei-te a conduzir a minha motorizada e deixaste de dar voltas no carro podre do teu amigo antes de teres a carta. Mas lá está, há borradas que ninguém consegue tapar.
O prego chega
-Meu... Estava tudo a correr bem. Só que pronto, aborreci-me e devia ter tido cuidado.
-Não, não devias ter tido cuidado. Acabavas com a moça e depois comias a outra. Na boa, sem dramas. E devias ter começado a discursar antes da comida vir. Come e cala-te.
Como em casa quando as notas caíam a refeição foi desaparecendo em silêncio, dentada a dentada, abrindo caminho pelas gargantas contrariadas. Os cafés que servem refeições ao balcão têm esta particularidade de nos aproximarem do chefe do café. E ninguém leva lá as mulheres, os casais ficam nas mesas da sala, atrás de nós. Esta é mais uma regra do comer ao balcão.
-Rapaz, ouve-me. Eu tive de aprender sozinho como as coisas se passam e como tudo o que fazia me lixava. Dei cabo do carro dos pais quando andavas no quinto ano, apanhei a primeira bebedeira quando andavas no nono. Tudo coisas para as quais te alertei. Agora pensa numa coisa, tenho quase trinta anos e estou aqui contigo a ensinar-te meia dúzia de coisas sobre como comer ao balcão. Não me vês ali sentado à mesa com uma mulher pois não?
-Não.
-Acredita em mim. Tens uma ou duas boas oportunidades. Há miúdas que usas e aproveitas e há mulheres às quais te agarras e não largas mais. Tu nunca tiveste acidentes de carro, foste para o hospital com uma bebedeira ou fumaste umas ganzas porque eu fui à frente e fiz essas merdas todas. Nunca tínhamos falado das minhas namoradas mas, se tenho esta idade, vivo sozinho e como sempre ao balcão deves fazer uma pequena ideia das asneiras que fiz.
Tu parado a olhar para o prato manchado de chocolate. Pareces ter apetite para mais.
Eu a desejar já não ter que me preocupar contigo com um nó na garganta.

21 de março de 2010

Correio de Domingo

Todos os Domingos a mesma comoção na minha rua. Comoção de choro e tristeza, não de agitação. Como encomendas, crianças trocam de mãos e adolescentes trocam de carros. As receptoras das encomendas, as mães, revelam a forma como o casamento acabou pela forma como reclamam a encomenda. Há as que ficam no carro a apitar com má cara, as que sobem de bom grado. Há as que vêm com os novos maridos e as que olham de lado para a saca da roupa e o cheque de assinatura ainda fresca dizendo para a rua toda ouvir algo que não ouço porque vivo no terceiro andar.
Os remetentes das encomendas, os homens estão condenados a entregar sempre bocados seus, esses são iguais, com mais ou menos disfarce lá vão à janela ver os carros das destinatárias desaparecer na esquina, numa destas ruas pequenas que ainda tem cruzamentos, um de cada vez. Na carteira e nos móveis fotografias dos pequenos envelopes que eram os seus bebés e, em alguns casos, as belas caixinhas e impressionantes volumes em que se tornaram. No frigorífico as lembranças do tempo em que na escola faziam postais do dia do pai, naquela idade em que ainda não têm vergonha de dizer
-Amo-te pai.
As encomendas, de todos os tamanhos e feitios, ora vão tristes ora vão alegres. Quem já recebeu uma encomenda em casa sabe que há pacotes alegres e outros tristonhos, nenhuma novidade aí. Só que há sempre um apego aos pacotes desembrulhados e ligeiramente esmurrados, que passaram por quatro funcionários dos correios antes de nos chegar às mãos. Ao abrir, um defeito ou uma peça partida e a devolução ao remetente, breve como se exige.
Cá em casa bastante comoção e muitas prateleiras vazias, espaço de sobra para mais livros, mais filmes e mais música porque para já não quero fotografias de pequenos envelopes na praia, disfarçados de super-heróis, com os avós ou em fotos encenadas. No entanto guardo algum espaço no frigorífico para dizerem que me amam e mantenho remetente e destinatário dentro da mesma morada.

14 de março de 2010

À distância

Tenho um gosto por jogos de computador. Demasiado dirias-me tu, se eu te perguntasse o que achas disso. É verdade que a prática é amiga da perfeição mas, tal como nos jogos de computador são os intervalos que revelam novas inspirações.
Muitas vezes jogo "coisas de corridas" como tu lhes chamas e quase outras tantas vezes exploro uma linha de corrida que me parece ser a ideal ou uma configuração de suspensão que me parece ser a mais indicada para a abrasão da pista. Tento e pratico e nada resulta. Passado umas semanas volto ao jogo e tento coisas novas, inspiradas pela novidade experiente de quem volta a uma coisa que conhece bem mas ainda não completamente.
Eu até diria que com o amor também pode ser assim, o que não resulta hoje pode resultar após umas semanas de separação desde que aplicado de forma diferente, em tempos diferentes.
Eu diria isso, se tu não achasses imensamente parvo.

7 de março de 2010

Uma caneca cheia de varanda

Tenho uma janela deprimida no meu quarto. Uma janela virada para uma parede onde tal qual um tronco desce um cano liso, pintado com o mesmo verde-caule da parede e pelo qual corre, em dias de chuva, toda a água que o telhado do prédio da frente recusa acolher. Neste quarto pequeno, Xis Xis Solteiro como lhe chama a minha mãe, poucas histórias acontecem além do guarda vestidos emproado, da cama com algum uso e da tal janela que não se vê ao espelho na parede do prédio da frente.
Nos dias de sol, quando quase nunca cá estou, penso na tua varanda e como podia ter morrido umas quatro vezes caso o resguardo em ferro forjado decidisse desfazer o abraço que tinha com o granito. Às vezes olhava lá para baixo a tentar perceber se sobreviveria e raramente me sentia optimista. Nunca tive curiosidade em tirar essa teima a limpo, note-se, mas tinha a queda tão calculada como tinha passado horas a pensar como fugir pela varanda no caso de nos acordarem numa noite qualquer a uma hora qualquer com uivos de fogo e socorro, breu e tosse por todo o lado e eu, com a maior das calmas, a salvar-te pelo canto esquerdo da varanda, bem próximo da janela do teu vizinho que, entre tantas noites a esperar-te, fui aprendendo a abrir do lado de fora.
Numa dessas noites em que te esperava -podia ter morrido duas vezes só nessa noite porque me debruçava no ferro para ver se aparecias- pratiquei como fazer um chocolate quente pastoso / enjoativo e como fazer com que a primeira qualidade não causasse a segunda. Ao chegares, a única caneca que restava era uma vermelha que lá tinhas sem asa e tu a corrigires
- É pega, não é asa.
eu a sorrir, assegurando-te
- Passo muito tempo de cabeça no ar, não preciso que me pegues, prefiro que me...
o pensamento a meio e tu com uma mancha de chocolate no queixo a desafiar
-...preferes que te ase?
contrariado admito que essa minha condição de cabeça no ar inclui não ter os pensamentos acabados na cabeça quando começo a falar. Apago da tua cara o sorriso e a mancha de chocolate num só beijo mas depois da tua varanda não duramos muito, o inverno acaba com os amores porque estes não podem ir à varanda e não há chocolate quente que simule aquela viscosidade nada enjoativa dos carinhos leves ao sol.
Depois da tua varanda vim a conhecer esta janela cabisbaixa que, já estive a ver, em caso de incêndio não me deixa escapar. Caso uma desgraça aconteça hão-de encontrar uma caixa preta com uma janela de plástico e lá dentro uma caneca igual à tua, tão alegremente inteira que se a tirar da caixa ela voa janela fora.
Dentro da caixa a caneca e dentro da caneca um post-it a dizer:
"Para que nem nas canecas te faltem asas, pega as minhas."

28 de fevereiro de 2010

Tristeza, cá, já e ainda é primavera

Só me apetecia chorar sabes? Apetecia-me não porque me apetecesse mas porque ninguém acreditava na minha tristeza enquanto não o fizesse. Um momento de emoção ou até só uma tremura de queixo bastaria para legitimar o momento solene. Lembro-me que quando era pequeno e o meu padrinho morreu me senti culpado porque lágrimas nem vê-las.
Sabes tristeza, não tenho tempo para ti. Às vezes bates à porta e deixas um bilhete no correio. Noutras ligas-me e eu deixo ir para voice mail. Nas vezes que chegas a entrar, habitualmente quando almoço sozinho na cozinha com o cão à espera da esmola, eu ignoro-te. Tu ali a olhar para mim como o cão, à espera de seres alimentada pela minha atenção e eu a fazer de conta. A abafar a tua presença com telejornal, jazz e planos acerca da sobremesa.
Ó tristeza quem dera que chorasse para que as pessoas lá no trabalho não murmurassem na Segunda-Feira que nada me atinge, que sorria como se nada se passasse e que não me importo por nada. Tristeza, pudesse eu ter tempo para ti ou acabasses tu com os cappuccinos feitos de café e espuma de leite, com a máquina do pão ou fulminasses os White Stripes e talvez te desse atenção e um assento ao meu lado no carro, no autocarro e à mesa nas refeições. Falaríamos imenso de banalidades e ocasionalmente desmoronariamos-nos em choros e prantos abundantes.
Agora indulgencia-me enquanto vou ali alegrar-me, por favor, não te quero entristecer mas nestes vinte e tal anos já te dei tanto e tu nada em troca.

21 de fevereiro de 2010

Full-Time

O que fazemos é a terceira ou quarta coisa mais interessante sobre nós. Mas nada mais que isso.
O meu avô era um tipo excelente, emocionava-se sempre que se falava de familiares mortos ou longínquos, era ligeiramente destravado na bebida e bastante profano na linguagem mas, acima de tudo ,era um humano bem disposto. O único defeito que tinha era achar que quando se reformasse a empresa onde trabalhava iria falir.
Um dia de manhã, supostamente enquanto se gabava da forma perfeita e fácil como manobrava uma prensa de papel até de olhos fechados a mão direita foi esmagada. Num minuto somos inteiros e noutro seguinte largamos farrapos.
Após esta reforma forçada o patrão dele empregou um puto da zona, sem qualquer experiência, que se adaptou bem e continuou a trabalhar lá até à eventual falência da empresa uns 15 anos depois.
O que ao crescer tirei desta história, real como o brilho que lhe crescia nos olhos sempre que se usava uma das bases de copos que eles lá faziam e que temos na família às toneladas, é que somos descartáveis. O que lá fazemos não é nosso património e mesmo que façamos um trabalho excelente há sempre alguém em formação que com alguns acidentes de percurso faz um trabalho bom o suficiente. Não somos nada.
E tudo bem. A sério.
Asseguro-me todos os dias que o meu maior trabalho, aquele que faço com maior afinco e dedicação está em casa. Uma família unida e carinhosa. Um local onde se trabalha bastante, se descansa pouco mas onde não sou descartável. Ninguém pode vir cá e fazer melhor trabalho do que o meu. Claro que um dia de manhã não acordo e deixo cá tudo. O local de trabalho e as tretas que partilhei com as pessoas para as quais e com as quais trabalhei.
Espero só ter tempo bastante para trabalhar para um moço ou uma moça que após a minha reforma tome bem conta da família, mesmo com acidentes de percurso, de uma forma melhor que a minha.

14 de fevereiro de 2010

Pianinho

Não te devolvi a foto que trago na carteira. Tu provavelmente nem te lembras de ma dar tal como eu não me lembro se ma deste ou se fui eu que ta roubei. Ela está ali, desafiadora e esbugalhada como tu. Parece até por vezes que me está a marcar o plástico como se o teu maxilar se enterrasse lá e tudo à volta fossem altos.
Enervava-te eu não tolerar barulho e de ti o único barulho que me agradava era o som dos teus passos flutuantes, esses pés pequenos largos nas sapatilhas brancas que só a Adidas faz. Aquele raspar nas pedrinhas como se ao andar calcasses pedaços de lâmpadas fluorescentes. Atrás de ti era como se caísse noite. Era como se fosses a assistente de um mágico e à tua passagem um pano de veludo preto caísse. Basicamente reescrevias a história porque ao passares havia um antes de ti e um depois de ti. Claro que na altura eu nem pensava muito nisso porque estava no teu presente, tu o meu ponteiro dos minutos comigo sempre a olhar em frente de braço - nunca mão - enlaçado.
Mas é como te digo, todos os teus outros barulhos me enervavam. Ao dormir não só me adormecias o braço com o teu maxilar afiado como expiravas imenso. Ao cozinhar mostravas nas panelas o talento que te faltou na bateria. Até na cama, no sexo ou algo mais, a tua anca estalava e eu parava com medo de te estar a desmontar alguma coisa.
No dia em que no seguinte já não regressaste desceste as escadas descalça, tijoleira fria e tu a descer. Nem um som de ventosa do pé descalço. Nada. Disseste
-Tenho de ir indo.
e fostes indo.
Se soubesses que tenho ainda aqui a tua fotografia, que vejo sempre que me pedem o cartão do ginásio, gritavas e batias - literalmente - com o pé no chão (Não gostava do som mas o gesto era amoroso) e como nunca gostei da tua voz nem estou para te ouvir partir lâmpadas mantenho a carteira fechada, abafada como se num daqueles dias em que dormias no meu braço, em vez de deixar que o teu maxilar me cortasse a circulação, eu te acordasse só para te mandar calar com um estalo na cara.

7 de fevereiro de 2010

Eu matei um tigre

Não conheço ninguém que parta corações ou desfaça sonhos de propósito. Não estou a dizer que não há quem o faça, apenas eu tenho a sorte de conhecer uns sacanas com alguma classe que fazem as asneiras sem intenção de magoar. O problema nestas coisas do magoar é que raramente se magoa com mentiras. É a verdade que nos rasga. E foi com a verdade que eu parti um pequenito coração.
Não sei se sei mais do que um miúdo de dez anos mas por vezes gostava de saber fazer aquele olhar deles e saber ser de novo inocente como eles. Depois esperava que nenhum adulto fizesse a leve sacanice de me dizer uma verdade cedo demais.
Que foi exactamente que eu fiz.
A minha prima, com os seus dez anos bastante mais esclarecidos do que à época eram os meus, confessou-me que os seus bonecos preferidos eram o Calvin e o Hobbes. Tal como o Principezinho e os desenhos do Tom & Jerry não há idade indicada para gostar, há sempre alguma coisa escrita nas linhas ou entrelinhas mudas que faz mais sentido em dado momento do que fez noutro. Há montanhas que nem vemos quando temos os olhos jovens. Os dez anos dela são mais espertos que os meus porque é uma rapariga curiosa que não tem vergonha de fazer perguntas.
-Olha, porque é que quando os pais do Calvin aparecem o tigre desaparece?
Considero mentir mas não consigo, lembro-me de já ter percebido a verdade sobre o Hobbes muito tarde e sentir-me estúpido. Nem sequer pedi uma segunda opinião com medo de ser gozado.
Depois da resposta, entregue com a minha sinceridade distraída, ficou o desencanto dela colado ao livro naqueles olhos enormes que herdou da mãe.
Expliquei-lhe que não fazia mal que o Hobbes fosse só um peluche porque muitas vezes o que imaginamos é melhor que a realidade e mais vale imaginar uma coisa do que não ter nada. Ela sorri contrariada a fazer um esforço para sacudir a desilusão.
Já era altura de ela saber que uma das coisas mais difíceis no ser humano é reaprender a gostar de algo ou alguém. O Hobbes merece o esforço.

31 de janeiro de 2010

Liquidação Total

Quando chegaste achei insensato que numa aldeia onde já se queimaram bruxas, onde se queimaram bruxas até depois de já não o fazerem em lado algum, quereres abrir uma loja de bruxarias. Nesta terra cremos em bruxas porque as há e sabemos quem são. É ver as senhoras correr para a mãe de santo para curar o casamento do filho ou o mau olhado que cai sobre as terras. Depois o dinheiro desaparece e ninguém diz porquê. Nos rumores do povo é o homem que joga ou bebe, derrete o dinheiro na boa vida, tem outra mulher.
Mas como ia dizendo, uma terra assim fechada e silenciosa precisava de uma loja que a obrigasse a falar no mercado. Esta terra precisava de uma pouca vergonha que a abanasse. Por isso admirei a tua coragem logo no primeiro dia ao copiares o vestido da deusa de louça de tamanho real que está na montra. Aquele tecido leve, transparente, aberto naquele decote que suplantava o da deusa em comprimento, largura e volúpia. A deusa, ideal e perfeita, não tinha o teu peito nem fazia esvoaçar o vestido, bastante acima do joelho, sempre que arrumavas umas cartas de tarot, uns incensos ou, que deus me perdoe, colocavas uma bola de cristal na última prateleira.
Na nossa biblioteca há dois livros sobre o oculto. Um sobre tarot e outro sobre runas. Para pedras já chega o meu trabalho e como sempre me safei bem à sueca trouxe o livro para casa e estudei tarot. Um plano genial que culminaria na minha entrada triunfal na loja, tu apanhada desprevenida a arrumar um livro de costas para o balcão e eu a dizer
-Ando à procura de um baralho de tarot de 1956
Assim como vou à cidade e peço um vinho de 2006. Com ar conhecedor, interessado e interessante. Uma comunhão de interesses. E tu a pensar na sorte que tiveste em vir para esta terra esquecida pelos deuses encontrar alguém como eu.
O tarot não tem nenhuma ligação à sueca. Não tinha tanta consciência disso como depois de estudar no livro. Esta era uma evidência que provavelmente me apontarias se o meu plano fosse simplesmente entrar na loja, de olhos envergonhados a perguntar sobre o que ali se vendia. Esse até poderia ser melhor plano. Não sei.
No dia em que acabei o livro, uns dois meses depois de o requisitar, decidi que era a altura certa de te fazer a tal visita. Da janela de minha casa via-te lá dentro com um ar aborrecido. Dizia-se que o negócio não te corria bem. Vendias umas velas aromáticas e pouco mais. Nesse mesmo dia, pela hora do almoço vários papeis no vidro diziam "LIQUIDAÇÃO TOTAL". Ainda nesse dia vi o teu olhar triste, a planetas do olhar desafiante e atitude atrevida, tão longe da deusa de louça como no primeiro dia a deusa estava de ti. Vi a tua atitude de desprezo a ver as velhas a entrar todas faladoras e interessadas como verdadeiros abutres de promoções que são. No final compravam uns incensos e estava feito.
Tinha pouco tempo portanto saí de casa com o plano B nas mãos. Entrei, o espanta espíritos a anunciar a minha chegada (lá se ia a parte do plano A em que te surpreendia de costas), tu a olhar vagamente para mim como se olha para um livro que não apetece ler e a dizer com pouca vontade de dizer fosse o que fosse
-Boa tarde, que deseja?
-Queria saber se a estátua que tem na montra também está à venda
Tu a hesitar...
-Não está. Estou com problemas em pagar a mudança daqui para fora mas a estátua é o que faz a montra, não a posso vender.
-É pena...
Tu a sorrires levemente. Parecias estranhar como se já não sorrisses à anos
-Mas para que queria a estátua?
-Estou a ver que vai embora. Vai antes que eu tivesse coragem de vir cá pedir-lhe explicações de tarot. Se eu ficasse com a estátua era um bocado seu que ficava comigo.

24 de janeiro de 2010

O lanche é a refeição mais importante do dia

Podias ter fechado a porta tal como podias ter desligado o telefone de todas as vezes que te liguei e depois de não ter mais nada para dizer ficavas ali a respirar no ar seco sem teres coragem de desligar.
Podias ter saído com um ponto e um parágrafo. Assim um final em grande. Uma frase marcada e citável por gerações e gerações que quisessem uma despedida com o impacto de um estalo na orelha. Podia-te ter ocorrido esquecer os nossos lanches em que eu te corrigia e dava perspectiva sobre a tua forma de fazer as coisas enquanto tu a mim perguntavas se estava tudo bem e quando eu dizia
-Sim está
nem tentavas confirmar se era verdade ou não.
Agora que me dizes,
-Sem os teus conselhos e a tua forma de ver a vida nada de bom me teria acontecido neste último ano, não teria coragem de insistir na minha relação e muito menos na gravidez que me uniu ao Marco
principalmente quando dizes
-Ele realmente merecia uma segunda oportunidade porque no fundo é boa pessoa
encosto a cabeça à almofada e penso que gostava muito mais de falar contigo quando te calavas e me ficavas a ouvir a respirar ar seco sem ter coragem de desligar. A ingenuidade de não notar o cansaço que transpira sempre que se diz que uma pessoa é boa no fundo faz notar que o tempo que perdi contigo foi, no fundo, tempo perdido.
O que eu não sei sobre ti chegava para escrever um álbum duplo de canções, admito isso, mas nem sonhas que o que não sabes sobre mim chegaria para preencher uma folha a escrever em cada linha de uma pauta musical como se fosses uma criança a corrigir a má caligrafia. Se tu tivesses vontade de ouvir mais do que a minha falsa felicidade ainda estávamos na sala de música a ditar letras para escrever nas pautas e, no meio de tanto material valioso usado indevidamente, tu perceberias que aquela música falava de ti e que talvez ter um baladeiro em casa fosse bom para a educação dos pequenos que me dizias nunca querer ter.
Não sabes por exemplo que eu só ficava suspenso ao telemóvel sem falar porque sabia o que queria dizer mas guardava-o aqui na ponta da língua à mão de semear.
-A minha prima meteu na cabeça que quer ser veterinária como tu.
-Passei de carro na tua antiga rua e estão lá obras.
-A minha irmã tem uma colega de trabalho com o teu nome.
-Ainda não lavei o casaco que te emprestei em Braga.
Estas coisas ficavam no bolso da camisa à espera de um momento aflito em que eu não tinha nada de interessante para dizer e seriam a desculpa para te ligar e ouvir a tua voz a meio da tarde. Se estivesses perto lanchávamos e tudo se repetia.
Podias ter ficado pelo menos uma vez para jantar e podias ter percebido que uma casa sem música é como uma veterinária sem coração. É como uma mãe sem amor pelo pai.
-Sim, claro que sim. Canto no teu casamento... Levo uns amigos e fazemos uma coisa porreira.
Ainda bem que me ocupaste. Não podia faltar ao casamento mas também não se constava que fosse ter muito apetite.

17 de janeiro de 2010

Um optimismo realista

Acusavam-no de ser optimista. Assim da mesma forma como as pessoas dos meios pequenos acusam de coisas com nomes feios as senhoras divorciadas que saem à noite. Com aquela inveja dos fracos que têm já mais vida para trás do que terão para diante.
Acusavam-no de ser demasiado optimista e ele a sorrir, com um cinismo doce de quem tem consciência de ser um ciclope em terra de cegos. Nas conversas privadas dizia-se que um dia as asas da juventude haviam de depenar e quando ele desse por si tinha uma vida suburbana como todos os outros.
-Ele há-de cair na real
diziam todos esses outros a observá-lo à distancia, depois de ele passar, intrigados pela ausência de perfumes químicos no ar e genuinamente intrigados com a forma como o ar parecia aquecer à sua volta, genuinamente perturbados pela brisa quase vento que se punha após a passagem dele.
Um dia acusaram-no de ser ingénuo e nem calor nem sorrisos nem cinismo. Muito menos vento. Foi um furacão que se levantou e para que todos ouvissem
-Os ingénuos são vocês porque durante o tempo que passam a olhar para o chão já as oportunidades vieram e foram. Podiam ter aprendido comigo que o amor não é uma bóia mas sim um mar e vocês, conforme vos aprouver, uma rede de arrasto ou uma linha. Há que acordar cedo e lançar um isco vivo porque só o peixe do restolho morde pedaços podres de lixo a flutuar. Podiam também ter aprendido que o trabalho existe para que se preencham espaços mortos na nossa vida. Se tivessem aprendido isso teriam notado que o meu optimismo se devia a ter uma boa casa à qual voltar, pequena mas bem preenchida, que cheira sempre a cozinhados e está continuamente colorida a flores e ervas aromáticas escolhidas a dedo por uma mulher que às vezes não nota que eu chego porque está a cantar na sala ou a desenhar a carvão na janela. Vocês chamam optimismo. A mim, nada me parece mais real.

10 de janeiro de 2010

Docemente Pussilánime

Invejo certas línguas por possuírem vocábulos que a nossa não tem.
Os franceses chamam la mer ao mar, os ingleses dizem que alguém faz algo gingerly quando está com muitos cuidados e os alemães arrumaram a partilha de sentimentos por várias pessoas acerca de uma obra de arte na palavra einfuehlung.
A nossa palavra saudade é o melhor exemplo de uma palavra a ser invejada por outras línguas. Comprime vários sentimentos numa só entrada no dicionário e além disso soa bem. Tem um timbre benevolente embora raramente o seja.
Na minha lista de pedidos figurariam simplesmente duas: Docemente e pussilánime.
Docemente, do francês doucement, é a forma mais carinhosa de recomendar gentileza no toque ou no trato que eu conheço. Pedir mais doçura a alguém parece-me mesmo ser o cúmulo da poesia no meio de uma conversa.
Pussilánime, do inglês pussillanimous, fica lá longe do outro lado do espectro da bondade das palavras e quer dizer covarde no sentido de inapto por preguiça ou falta de ânimo. Claro que podia chamar a alguém um covarde preguiçoso mas o tanto que se perdia na tradução era inversamente proporcional ao factor ridículo. Sempre -e infelizmente acontece amiúde- que me cruzasse com alguém da minha idade ou mais novo, sem sonhos ou aspirações, de ombros e olhos caídos, conformado com a carreira e família que não deseja aturar só porque "tem de ser", chamava-lhe pussilánime.
Como não tenho essas palavras acabo por, com outra doçura e outras covardias, espalhar a magia e o inconformismo com os gestos e os olhares, o toque e o perfume das passagens razas pelos cabelos.

3 de janeiro de 2010

Entrevista

Na entrevista dizias que este era o teu miradouro preferido de toda a cidade. Fico à espera que passes, de coração à mostra, à procura de um amor que te agarre e que meta mais uma moeda no binóculo da ponta quando o tempo já estiver quase a fechar a objectiva. Estou à espera que passes a correr, nas tuas calças de fato-de-treino e sem música nos ouvidos, na entrevista dizias que gostavas mais dos sons da cidade, das gaivotas e das pessoas, até mesmo dos carros e das discussões nas paragens de autocarros. Gostavas mais disso do que qualquer música, até mesmo da tua, portanto enquanto estiveres a fazer a tua corrida vespertina e parares aqui a observar a tua cidade, com o nariz enterrado no binóculo eu vou aparecer, dizer olá e convidar-te para um café.
Tudo calculado claro levo-te ao café mais perto daqui, um verdadeiro tasco, e lá partilharemos uma fatia de bolo de cenoura, tu a beber uma cerveja eu um café, com os donos a achar que talvez sejas tu mas sem acreditar que és mesmo tu. Talvez na rádio cantes e eles ainda acreditem menos. Talvez te venham pedir uma fotografia para iniciar uma parede de gente famosa que por lá passou. De qualquer das formas eu a levar-te a um café modesto, porque disseste na entrevista que estavas farta dos tipos com quem te davas e que te levavam sempre a restaurantes e cafés caros sem saber que na realidade são os sítios castiços que te conquistam. São as pessoas modestas e desinteressadas que te apelam mais.
Mas passou demasiado tempo e tu sem vires, passou o tempo que tu levarias a passar umas quatro vezes nesse teu circuito de manutenção e passou em mim a esperança de esperar. Guardo o euro que colocaria no binóculo e o dinheiro que daria no café para partilharmos o bolo. Guardo esse dinheiro e vou espetá-lo na baixa, naquele café caro onde o café custa dois euros e uma fatia de bolo, menor até do que aquela que íamos partilhar, é caríssima.
Na próxima entrevista que deres não vás dizer que ainda não encontraste o amor que eu não fico com pena de ti nem te procuro mais. Se fizesses exercício todos os dias, tal como disseste, tinhas-me encontrado.