17 de novembro de 2013

Ceuta

Naquelas escadas, desenhadas habilmente por um arquitecto já morto, residem os mistérios de quase um século de mulheres que descem e sobem, chegam e partem. Acompanhadas por vezes mas na sua grande maioria sós. Há meses um arquitecto jovem, de olhos bem vivos, ouviu a história da improvável estatística das escadas daquele café, contou-lhe o próprio dono que durante décadas os poetas do Porto aprenderam a jogar bisca, sueca, damas, dominó ou bilhar só para povoarem o sopé das escadas à espera das musas que por vezes o eram simultaneamente para mais do que um desses poetas. Assim se criou o mito dos enganos, de como certas donzelas iam em curtos espaços de tempo à cave do café falsamente à procura da casa de banho para se banharem nas hábeis palavras dos jogadores inábeis. Diz-se que se fizeram casamentos e campeões da jogatana, que outros caíram na desgraça do jogo e da bebida que coligavam para esquecer a graça daquelas que subiam as escadas para nunca mais as descer.
Ao arquitecto, em fase apaixonada por uma moça que se vivesse nessas decadas das donzelas teria compêndios de sonetos dedicados só aos seus cabelos, pareceu importante mexer em tudo, apagar essas mesas de jogo onde poetas perderam a juventude, o dinheiro e os fígados mas às escadas deixar em paz para que novas pernas de perdição as percorressem a causar amores tão bons e tão maus. As obras foram avançando e a cor regressou ao espaço antigo, o bar aumentou, a casa de banho está mais brilhante. Quando se fez a inauguração, os poucos desses poetas ainda vivos regressaram pelas escadas até à sala das suas esperas e grandes jogadas, alguns ainda sabiam os velhos poemas de cor e ainda se lembravam do nome das donzelas, para quem as perderam e a quem as ganharam. Os campeões voltaram.
Por vezes, nesse café, por essas escadas, ainda desce uma dessas mulheres com cabelos que não cabem nesta década, com olhos tão grandes que não cabem neste texto e causam assim daquelas paixões que mal cabem numa vida inteira. À sua espera estão os novos poetas, os que registam em palavras o abalo que passa ao lado dos sismógrafos.

10 de novembro de 2013

Fulminante

Atrasei-me meu amor, não é hábito meu, tu sabes, mas atrasei-me. Estava para colocar em palavras esta coisa nossa, este segredo, mas atrasei-me. Culpo a surpresa do teu surgimento, o imediatismo do nosso amor e a facilidade com que o abraço se enlaça por este meu atraso. A culpa é pouco minha como vês.
Talvez chegue tarde e quando o souberes já não tenha importância mas, neste dia que já chega além do esperado e merecido, eu amo-te. Tento escrever em letras mais pequenas para leres num dulcíssimo sussurro como quando naquelas ocasiões nuas de paixão me remeto à delicadeza dos teus ouvidos para lá te depositar o verbo amar enquanto te amo de corpo inteiro. Outras vezes tenho o meu amor no jantar que te preparo ou nas caricias que ao final do dia te acalmam os pés. A maioria daz vezes o amor que te tenho é uma coisa só minha, que vive cá dentro à prova de Outonos.
Havia uma cidade vazia antes de chegares, havia mar sem peixes e ar sem aves. Antes de ti, mal consigo recordar agora o que me fazia falta e o que procurava por aí nas coisas que ainda faço e que me fazem sorrir por poder partilhá-las contigo. Já há o antes e o depois da nossa invenção, das nossas aventuras, quem planta um sorriso tem o privilégio de poder vir cá colher os frutos e, meu amor, como podes já encher cestas e camiões com tanta alegria em flor.
Ainda assim, se chegar tarde, não tem mal. Nada se deve a quem nos ama, e se a despedida chegar, abrupta como o final de um dia, nada mais interessa do que agradecer o tempo que partilhado se fez nosso e num abraço, sem qualquer vergonha, ali à porta dos teus ouvidos, sussurrar na letra mais pequena do mundo
-Amo-te.