30 de dezembro de 2012

Sílica

Na fuga a esta humidade que aos olhos me chega das memórias, das tristezas de alegrias passadas que já não acontecem mais, há as letras que escrevo. Me, te, vos escrevo. 
Quando compro sapatos fico feliz quando um operário foi atencioso o suficiente de colocar um saquinho com sílica na caixa, fico informado, pelo diminuto texto no saquinho, que nos meus sapatos não há humidades mal-vindas e que não se pode comer a sílica. Quando era pequeno vivia fascinado pelas esferas saltitonas de sílica que estavam dentro desse saquinho como se fossem uma areia gorda e demasiado perfeita para ser natural e onde as ondas da humidade do calçado morriam sem deixar nem espuma. .
Hoje eu até já pago o meu próprio calçado e já não insisto em trazer as caixas de sapatilhas garridas (que inversamente ao poder de compra deixei de ter vontade de possuir) para casa, produzo a minha própria sílica. Mas em vez de pedrinhas esféricas nas pálpebras tenho letras nos dedos. Com essas letras faço palavras e nunca o mundo vê uma lágrima minha como se cada letra fosse um quilo de cimento que endurece as minhas pestanas formando uma barragem que armazena lágrimas a montante, amontoando-se até serem absorvidas por lençóis de água interiores, tsunamis de energia que desaguam na ponta da caneta.
Às vezes penso que podia destruir, atacar uma ilha em mim com correntes de escrita e alagá-la sem tempo para evacuações. Aquelas ilhas que nos dizem com a idade serem destruídas. Bondade, inocência e paciência. Baluartes do tempo no qual não sentíamos tanto essas dores de já ter crescido e nos terem mentido quando diziam que quando fossemos velhos mingávamos. Pudesse eu mingar e recuava até hoje. Porque hoje sou feliz e escrevo. Me, te, vos escrevo. 
E, como até a rir tantas vezes se chora, a sílica fielmente espera o seu uso dentro de mim com a paciência dos tais saquinhos que repousam dentro de uma caixa de sapatos que saíram de moda em 2008 e que um dia vão para o lixo, com o orgulho sem glória de ter feito um excelente trabalho.