17 de junho de 2012

Vandalismo

Quando nos assaltam a casa a primeira coisa em que pensamos é: "Será que eles já saíram?" Há aquele susto, aquele medo de nos fecharmos naquele espaço com alguém corajoso o suficiente para nos roubar.
Quando me apaixono também é assim. Não me sinto roubado mas há ali um medo que a pessoa já esteja cá dentro, escondida num armário ou numa gaveta e aí eu penso: "Será que ela já entrou?" cheio de medo que me possa fazer mal.
Na realidade mais vezes fui assaltado do que me vi apaixonado, vivo num local perigoso onde as mulheres não me interessam. Os perigos que me rodeiam não são causados por essas vândalas do coração. Ainda assim, mantenho umas trancas a fechar o peito porque já o vi roubado e os provérbios estão cá para nos proteger.
Um dia deixo de me preocupar e as portas e as janelas ficam abertas, mantenho os meus haveres à vista para que me assaltem, sem medos. No dia em que perceber que o que tenho para oferecer é tão pouco deixo de ter medo de o não ter ou de o desbaratar e permito que entrem sem me preocupar se ficam ou saem. Um dia vou perceber que quem entra deixa sempre mais do que leva, nem que o que fica seja residual como um cabelo ou uma impressão digital. 
Um dia ao perguntar ao vazio
-Está aí alguém
vou receber uma resposta positiva e em vez de medo vou ter orgulho de alguém ter pensado que eu tinha algo de valioso para roubar.

3 de junho de 2012

Habitual

Cansado, deitado no chão, sem responder à pergunta 
-Como se chama? 
deixem-me, se já não tenho unhas nos dedos nem me lembro como ganhei estas cicatrizes secas nas mãos serei ainda um homem?
Há uns anos eu era o Alfredo. Boa pessoa, trabalhador, casado e com dois filhos. Podia ser usado como exemplo em manuais para explicar o que era um homem normal e expectável.
Não consta que as aves migratórias se fartem da primavera, se assim fosse elas não rumavam a sul com as primeiras chuvas de Outono. As aves amam a Primavera e por isso seguem-na para todo o lado. Nunca se pegam a um sítio. As aves, como as pessoas, pegam-se a sentimentos e por isso tanto umas como as outras migram entre sítios que lhes dão esses sentimentos. Por isso não levo a mal que a minha família tenha migrado tal como a minha casa não se zanga pela ida das andorinhas. Deve ser da nossa natureza respeitar a Natureza e portanto tanto mulher como filhos foram para locais mais quentes quando por cá chovia e eu era um trovão em vez de um sol.
Perguntam-me
-Tem alguém em casa? Sabe onde mora? Vive sozinho?
e não respondo por vergonha. Peço um copo de água com orgulho e bebo-o lentamente. Quando o INEM chega perguntam-me 
-Como se chama?
e antes de poder responder um dos paramédicos diz
-Não te incomodes, é um habitual
e eu, que nunca gostei do meu nome, penso que me poderia dar por esse nome. Tal como há gente chamada Amável e Defensor eu poderia tornar-me no Habitual. Ter um desses nomes convidativos que parecem fazer uma introdução às pessoas como se andassem para todo o lado com um folheto que as explicasse.
-O seu nome é Alfredo não é?
e não respondo, ainda agora mudei de identidade e já vem um gajo qualquer dizer que me conhece
-Ainda na semana passada o socorremos. Tem de deixar a bebida Senhor Alfredo
O meu nome é Habitual, ainda há pouco você disse aí ao seu colega que eu era habitual. Escolha um nome por favor, a ventos tantos, a primaveras tão frias que passaram perdi a conta a quem sou.
-Agora vamos lá Senhor Alfredo, vamos para a ambulância, fica no hospital umas horinhas
Afinal sou o Alfredo na mesma, obrigado pela ajuda mas deixem-me cá estar, frio por frio, nome por nome, fico aqui deitado que o tempo vai passando e as aves lá em cima olham-me nos olhos como que a querer levar-me com elas.