30 de dezembro de 2012

Sílica

Na fuga a esta humidade que aos olhos me chega das memórias, das tristezas de alegrias passadas que já não acontecem mais, há as letras que escrevo. Me, te, vos escrevo. 
Quando compro sapatos fico feliz quando um operário foi atencioso o suficiente de colocar um saquinho com sílica na caixa, fico informado, pelo diminuto texto no saquinho, que nos meus sapatos não há humidades mal-vindas e que não se pode comer a sílica. Quando era pequeno vivia fascinado pelas esferas saltitonas de sílica que estavam dentro desse saquinho como se fossem uma areia gorda e demasiado perfeita para ser natural e onde as ondas da humidade do calçado morriam sem deixar nem espuma. .
Hoje eu até já pago o meu próprio calçado e já não insisto em trazer as caixas de sapatilhas garridas (que inversamente ao poder de compra deixei de ter vontade de possuir) para casa, produzo a minha própria sílica. Mas em vez de pedrinhas esféricas nas pálpebras tenho letras nos dedos. Com essas letras faço palavras e nunca o mundo vê uma lágrima minha como se cada letra fosse um quilo de cimento que endurece as minhas pestanas formando uma barragem que armazena lágrimas a montante, amontoando-se até serem absorvidas por lençóis de água interiores, tsunamis de energia que desaguam na ponta da caneta.
Às vezes penso que podia destruir, atacar uma ilha em mim com correntes de escrita e alagá-la sem tempo para evacuações. Aquelas ilhas que nos dizem com a idade serem destruídas. Bondade, inocência e paciência. Baluartes do tempo no qual não sentíamos tanto essas dores de já ter crescido e nos terem mentido quando diziam que quando fossemos velhos mingávamos. Pudesse eu mingar e recuava até hoje. Porque hoje sou feliz e escrevo. Me, te, vos escrevo. 
E, como até a rir tantas vezes se chora, a sílica fielmente espera o seu uso dentro de mim com a paciência dos tais saquinhos que repousam dentro de uma caixa de sapatos que saíram de moda em 2008 e que um dia vão para o lixo, com o orgulho sem glória de ter feito um excelente trabalho.

17 de novembro de 2012

Newton

Na arte do frasear, de agrupar umas tantas palavras de forma agradável, há uns tantos guardas fronteiriços que refrescam os ânimos de quem grita poesia a cada palavra que passa. Apaixono-me com facilidade por detalhes sem interesse. Decorações. Para mim é tão importante a quantidade absurda de porta chaves que uma pessoa tem quanto o é a chavinha envergonhada e a porta que tão bem a conhece. Assim sendo, fico pasmado com a delicadeza com que alguém pensa num facto que sempre por cá andou e o fraseia de forma a que todos o entendam sem nunca deixar de o fazer bondoso com a língua e a estética.
Falar de mulheres é fácil para quem as ama. Pensa-se na tal que se ama ou, para efeitos dramáticos, na que se amou um dia e que nunca mais voltou a amar-nos. É como escrever sobre aves, flores, filhos, passos de gato ou olhos de cão. São coisas belas por si só, são monumentos da estética, ex libris da criação sem interessar muito se natural ou divina. 
"Para cada acção há uma reacção igual e oposta" é a frase de abertura da terceira lei do movimento de Newton e só isto, escrito numa qualquer letra decorada que impressione podia bem passar por poesia e pôr o mais atento dos guardas a coçar a cabeça e a chamar o chefe. Podia ter sido escrito de forma bastante mais básica ou simplesmente formulado numa fórmula que todos concordassem como correcta e verificável mas ao senhor Newton caíam maçãs enquanto pensava no mistério da gravidade. Alguém assim abençoado, simultaneamente alerta e grato por essas bênçãos, merece que uma língua lhe dedique poemas e abra excepções para que também a física possa ter um pedaço de poesia e lembre que nem todo o minimalismo é belo pois é bela esta física da atracção e do afastamento seu igual e tão oposto.

11 de novembro de 2012

Perdão

É tudo uma questão de perdão. Há coisas que perdoamos a algumas pessoas que noutras se torna impossível de tolerar. É assim a generosidade. Vi nos últimos dias, ao ser torpe com todas as outras pessoas, como sou generoso contigo. São as falhas comuns que, em ti, fundamentam a metafísica do ser do nosso amor. E isso só te perdoo a ti.
Não me lembro de alguma vez ter criticado a forma criativa como acentuas as frases. Podia ter-te expatriado cá de casa à primeira vez que trocaste a música a uma qualquer palavra. Mesmo uma das mais simples como bonito, chocolate ou livro tinham, ali logo à saída da tua boca um sabor e uma forma amendoada de partir.
Há coisa de dois anos, quem quero eu enganar, há precisamente dois anos, despediste-te prometendo
-Vou procurar a minha felicidade
e eu a olhar para ti sem nada para dizer, não havia forma de alguma vez essa tua busca te trazer de volta. Se a encontrasses, à felicidade, por aí ficavas pelo sítio onde ela estivesse se acaso ela não se cruzasse contigo andarias sempre a procurar. Em todo o lado menos aqui.
Mas perdoo-te. 
Tenho duas garrafas de vinho. Uma de cada, um tinto alentejano e um branco do Douro. No frigorífico tenho duas refeições, uma de cada. Carne e peixe. Nada me falta. Não se pode guardar a felicidade num frigorífico à espera que ela não se estrague e muito menos se consegue evitar que ela fuja se a engarrafarmos. A felicidade cria depósito se não for agitada, estraga-se. Perdoo-te então a ti teres ido à procura de algo que raramente perdoo a alguém pensar que encontrou por cá, comigo.
E se por acaso tu me perdoares e voltares, lembrar-me-ei das palavras da sempre-preferida Mitó, pois é mesmo muito provável que te volte a amar mas, espero que nesse dia, seja tarde demais.

28 de outubro de 2012

Repetidamente

Havia uma palavra qualquer ali no que as pessoas chamam ponta da língua mas eu nem sequer estava a falar. Estava a escrever numa daquelas máquinas de mensagens telegráficas com ecrã táctil portanto, no limite da teoria, tinha ali uma palavra na ponta dos dedos, a querer sair mas que não chegava ao ecrã. O cursor inquisitivo, impaciente, a piscar como um olhar que de tão aberto, seca e obriga a pestanejar. 
Repetidamente.
Tenho de dormir mais. Ainda me lembro quando as palavras ditas, escritas ou pensadas surgiam do nada. Era um tempo em que os sentimentos vinham à tona com mais frequência. Sorria e chorava mais. Às tantas envelhecer não é ficar mais triste ou alegre. Às tantas a idade desgasta por abrasão e vamos ficando despidos de mais uma camada de nós. E nem anéis nos crescem como às árvores para podermos dizer, à nossa morte, quantos anos tínhamos na realidade. 
Parece-me, isso sim, que em tudo há a tal relatividade. A palavra não me veio aos dedos porque eu sabia para onde ela ia, que olhos a iam ler e que dedos iriam depois falar de volta. Parece-me também que nestes últimos anos fico menos triste e menos alegre porque esse tempo passou. O tempo da incerteza e do desequilíbrio ficou naquele tempo em que saía de casa sem saber o que encontrar, sem saber que no meu país havias tu e os teus dedos, esse conhecimento genial e que só eu sei como se uma teoria geral de alguma coisa fosse. Como se entre nós se fizesse uma lei que nem milénios de experimentação conseguem negar. 
Depois de todas as palavras, que o cursor se lixe, que pisque, que seque como me secaram lágrimas e sorrisos. Envelhecemos mas no nosso país ainda estou eu, tu e os nossos dedos. Talvez te ligue e as palavras saiam melhor. Talvez te diga que gosto de ti.
Repetidamente.

7 de outubro de 2012

Saltemos

Confia nos meus joelhos pequena, sei que os conheces bem, sabes quantas vezes eles fraquejaram, sabes inclusive das vezes que eles fraquejaram por outras razões além de ti mas, vá, confia em mim e nos meus joelhos. Saltemos. O salto que eu proponho não dura distância ou altura mas sim tempo. Três meses desde a largada à chegada.
Sei que o tempo prejudica o corpo, estamos ambos naquele pico que antecede a descida, no zénite da saúde e alegria, como numa montanha. Estamos no local das nossas vidas do qual melhor se vê o sol de dia e as constelações à noite.
Quando o Outono chegou a nós, amarelecemos como se espera do estado outonal de estar. Livramo-nos das folhas caducas, do peso morto excessivo, da carga putrefacta e que não nos permitia saltar. Ficaram as poucas e boas folhas perenes, deixemo-las ficar pois só nos fortalecem, fazem-nos mais altos e com elas às costas, na ponta dos dedos, saltemos.
Sinto o Outono terminar e saltemos.
No salto passarão três meses e aterraremos seguros e sorridentes na Primavera. O Inverno? Deixa de existir. Este ano vai com as aves que dele fogem e em nós, por dentro de nós, rebentarão flores como no poema.
Saltemos o Inverno. Confia em mim e nos meus joelhos. Quando chegarmos ao lado de lá, porque isto vai ser possível, pode até chover e haver frio, pouco interessará. Cá dentro de nós seremos relvados floridos e jamais alguma nova tristeza nos poderá alagar.

23 de setembro de 2012

Rua

Há dias em que a minha rua jorra de carros e pessoas. Uns para cima e outros para baixo como se fossem sangue venoso e sangue arterial e a minha rua, naquela largueza estreita como só as velhas cidades têm, fosse uma veia daquelas importantes. Naquele tempo em que a subias trazias-me oxigénio puro e nem com a rua cortada o fornecimento dos nutrientes me falhava. Depois os carros só desciam. Depois decidiram só permitir que subissem. Achei bem. Chegavas mais rápido e trazias mais tempo contigo para consumirmos com o objectivo de nos saciar.
Depois o teu carro avariou, a linha de autocarro que cá parava parou de cá parar e tu deixaste de cá deixar o oxigénio e os nutrientes e ficou para aqui uma acumulação de sangue venoso mais azul escuro que o azul escuro que usam sempre para o representar nos livros de escola. Azul que ninguém vinha cá colorir. Mesmo depois dos autocarros voltarem a respeitar a paragem que recolocaram aqui à porta. Mesmo depois de eu comprar vasos.
No outro dia, como na canção que nesse dia ouvira, descobri que vives, gostei de o saber mas não perdi a cabeça como na canção se recomenda. O chão falhou-me e aquele acréscimo de oxigénio deu-me uma pequena euforia que fabricou o sorriso que tu tinhas levado contigo. 
Nesta rua que é tão minha, os carros sobem a motor e as pessoas descem a pé. Há pessoas a subir também de bicicleta motorizada e pessoas com compras à espera do autocarro naquela paciência de quem só pensa na sua casa. Eu vou limpando o passeio a balde e esfregão, faço um corredor que vai da caixa multibanco do fundo da rua até à minha porta. Hei-de fazer os 764 metros de cimento reluzir como se fossem mármore e tu subirás, se não escorregares, até à minha porta onde dirás como sempre
-Cheguei, trago-te coisas
como se nunca o tivesses deixado de dizer ou se nunca o tivesses dito a outros noutras ruas e noutras paragens.

12 de agosto de 2012

Parecer uma menina

Eu vivia com uma pessoa que me matava os bichos. Uma vez apareceu uma barata e ela, a pessoa que me matava os bichos, pegou nela e esmagou-a com os dedos. Foi lavá-los e ao regressar disse
-Pareces uma menina
a criticar o facto de eu ter estado uns bons trinta segundos a apontar com o chinelo sem nada fazer.
Essa mesma pessoa matou-me mais que uma vez a gripe. Quando lhe disse que achava que a gripe era imortal e que só a conseguíamos enfraquecer como nos filmes acontece com aqueles maus mesmo maus a resposta dela foi
-Pareces uma menina.
Agora que se foram todos: as baratas, as gripes, a pessoa que me matava todos estes bichos, tenho de ganhar o hábito de conviver com o bicho da saudade que não tem patas e não consta que seja contagioso mas que como os tais maus mesmo maus dos filmes não morre e apenas se ausenta durante um pouco para se fortalecer, à espreita do momento em que se pode instalar de novo ao nosso lado como uma barata gigante portadora de gripe.
E eu até pegaria no telefone e te contaria estas coisas mas já sei que a tua única resposta seria
-Deixa-te disso, pareces uma menina.

22 de julho de 2012

O senhor sem nome

Os gatos tinham adoptado aquele senhor. Diz quem tem gatos que nunca se tem um gato, o gato tem-nos a nós. Portanto digo que os gatos adoptaram o tal senhor. Ele, o senhor, lá pagava a sua taxa de adopção em géneros, servindo patés e rações que muito pareciam aprazer aos gatos.
Os gatos, mesmo os mestiços e bastardos eram bem educados e nunca tocavam no delicioso peixe que o senhor comprava logo de manhãzinha no mercado perto do mar, perto de casa. O senhor grelhava-os ao vento e, por mais que olhassem e miassem, para os gatos só continuava a haver ração e paté. Havia muita daquela suposta falsa caricia com o corpo como que a dizer
-Eu até gosto de ti
naquela linguagem corporal que é a dos gatos. Mas o senhor não vacilava e avançava pelos peixes adiante, resgatados das brasas de carvão, precisando de todos os dedos da sua mão direita (que eram só quatro) para contar os peixes que comeu. Com esses mesmos dedos ofereceu aos gatos as cabeças dos peixes, prenda que muito lhes parecia agradar embora notassem, como só os gatos o fazem entender, que a maior parte do peixe já lá não estava.
Um dia a porta do senhor não abriu. Esta era uma casa antiga, tinha duas portas, uma de madeira e outra de alumínio. A de madeira via todos os dias, a de alumínio ando agora a ver todos os dias mas demorei uns tantos, bem mais que os dedos que tenho em ambas as mãos (ainda conto dez deles), a entender que a porta de alumínio era como o proverbial caixão de chumbo que nunca mais se abre e não deixa ver o ente querido defunto.
Os gatos não ficaram todos, só por lá andam três que se vão mantendo com aquela suave banditagem dos animais urbanos que caçam pequenos animais vivos, recolhem pequenos restos dos caixotes e contam com a secular bondade dos estranhos. Eu e os gatos temos uma coisa em comum. Não nos interessava o nome do senhor. Apenas interessava que fazia o bem e comia peixe que não partilhava com ninguém. 
Isso basta-me.

17 de junho de 2012

Vandalismo

Quando nos assaltam a casa a primeira coisa em que pensamos é: "Será que eles já saíram?" Há aquele susto, aquele medo de nos fecharmos naquele espaço com alguém corajoso o suficiente para nos roubar.
Quando me apaixono também é assim. Não me sinto roubado mas há ali um medo que a pessoa já esteja cá dentro, escondida num armário ou numa gaveta e aí eu penso: "Será que ela já entrou?" cheio de medo que me possa fazer mal.
Na realidade mais vezes fui assaltado do que me vi apaixonado, vivo num local perigoso onde as mulheres não me interessam. Os perigos que me rodeiam não são causados por essas vândalas do coração. Ainda assim, mantenho umas trancas a fechar o peito porque já o vi roubado e os provérbios estão cá para nos proteger.
Um dia deixo de me preocupar e as portas e as janelas ficam abertas, mantenho os meus haveres à vista para que me assaltem, sem medos. No dia em que perceber que o que tenho para oferecer é tão pouco deixo de ter medo de o não ter ou de o desbaratar e permito que entrem sem me preocupar se ficam ou saem. Um dia vou perceber que quem entra deixa sempre mais do que leva, nem que o que fica seja residual como um cabelo ou uma impressão digital. 
Um dia ao perguntar ao vazio
-Está aí alguém
vou receber uma resposta positiva e em vez de medo vou ter orgulho de alguém ter pensado que eu tinha algo de valioso para roubar.

3 de junho de 2012

Habitual

Cansado, deitado no chão, sem responder à pergunta 
-Como se chama? 
deixem-me, se já não tenho unhas nos dedos nem me lembro como ganhei estas cicatrizes secas nas mãos serei ainda um homem?
Há uns anos eu era o Alfredo. Boa pessoa, trabalhador, casado e com dois filhos. Podia ser usado como exemplo em manuais para explicar o que era um homem normal e expectável.
Não consta que as aves migratórias se fartem da primavera, se assim fosse elas não rumavam a sul com as primeiras chuvas de Outono. As aves amam a Primavera e por isso seguem-na para todo o lado. Nunca se pegam a um sítio. As aves, como as pessoas, pegam-se a sentimentos e por isso tanto umas como as outras migram entre sítios que lhes dão esses sentimentos. Por isso não levo a mal que a minha família tenha migrado tal como a minha casa não se zanga pela ida das andorinhas. Deve ser da nossa natureza respeitar a Natureza e portanto tanto mulher como filhos foram para locais mais quentes quando por cá chovia e eu era um trovão em vez de um sol.
Perguntam-me
-Tem alguém em casa? Sabe onde mora? Vive sozinho?
e não respondo por vergonha. Peço um copo de água com orgulho e bebo-o lentamente. Quando o INEM chega perguntam-me 
-Como se chama?
e antes de poder responder um dos paramédicos diz
-Não te incomodes, é um habitual
e eu, que nunca gostei do meu nome, penso que me poderia dar por esse nome. Tal como há gente chamada Amável e Defensor eu poderia tornar-me no Habitual. Ter um desses nomes convidativos que parecem fazer uma introdução às pessoas como se andassem para todo o lado com um folheto que as explicasse.
-O seu nome é Alfredo não é?
e não respondo, ainda agora mudei de identidade e já vem um gajo qualquer dizer que me conhece
-Ainda na semana passada o socorremos. Tem de deixar a bebida Senhor Alfredo
O meu nome é Habitual, ainda há pouco você disse aí ao seu colega que eu era habitual. Escolha um nome por favor, a ventos tantos, a primaveras tão frias que passaram perdi a conta a quem sou.
-Agora vamos lá Senhor Alfredo, vamos para a ambulância, fica no hospital umas horinhas
Afinal sou o Alfredo na mesma, obrigado pela ajuda mas deixem-me cá estar, frio por frio, nome por nome, fico aqui deitado que o tempo vai passando e as aves lá em cima olham-me nos olhos como que a querer levar-me com elas.

13 de maio de 2012

Residente

Nasces-me aqui, neste meu campo pessoal e tantas vezes infértil, como uma erva daninha que não pedi nem semeei e mesmo assim me surge a palpitar e agitar ao vento. A aromatizar este meu interior. Quero-te sempre assim bravia e viçosa, a dar as boas vindas no regresso a casa e muitas vezes a bater com a porta quando e sempre quando, eu mereço. Sossega pequena, sossega. Não tenho intenção de te espetar num vaso mesmo que ao lado da janela, não te quero amarrada à minha rega nem dependente da minha lembrança em te dar carinho. Quero ainda menos aparar as tuas folhas e raízes, essas artimanhas doces e sinceras com que me abraças e te fazes residente. Sabes que já te tentei arrancar daqui, que fosses para outro lado crescer noutros campos ia-me matar mas, como às andorinhas, deixava-te ir na segurança do teu regresso. Penso que tu também te tentaste arrancar daqui mas o vento não te ajudou. As chuvas não favoreceram. Aconteceram todas aquelas desculpas que impedem as mudanças que sabemos não serem benéficas. Vá, cresce lá de novo, minha mais bela das ervas daninhas, vais de novo dar cá flores, eu sei, há-de cheirar a ti em toda a cidade, pétala a pétala no vento que não te afasta mas espalha por todo o lado como as raízes que tens aqui cravadas no meu campo, que jamais conhecerá o pousio dos amores.

1 de abril de 2012

O cúmulo

Tu que és de Direito, que estudaste leis e códigos e propostas, entendes bem que haja um cúmulo, um ponto limite em que não há, não pode haver, não é permitido que exista mais pena e penitência.
Pois é assim o meu amor, um crime que atingiu o seu cúmulo jurídico e pelo qual não peno nem mais uma música ou mais uma lágrima. Cá me aguento, muito obrigado, neste meu cúmulo afectivo que por não ter apelo ou saída precária me vai prendendo a ti.
Passei todo o meu tempo habituado a dias de sol e ventos quentes, a ter sorte e a ver a minha credibilidade recompensada por deliberações favoráveis. Podes então entender a minha surpresa quando as chuvas vieram contigo e o azar, obliquo, caiu por aqui com o estrondo de um batimento cardíaco a mais e os passos que tão longos e desaconselhados doíam sem sangrar.
Mas como te disse, o meu cúmulo foi atingido, perdeu-se na última instância a possibilidade de recurso e vou impor a ordem na sala até que não precise de, nas paredes desta cela que tu me mostraste, acrescentar mais risquinhos às dezenas de dias que já passei agarrado a esta liberdade condicional.

25 de março de 2012

A minha casa

Podias nem ter telhado ou paredes onde o assentar, podias não ter soalho que não ilustrasse as paredes nem tapasse as fundações. Tu podias não conseguir tapar as tuas fundações e canalizações, podias ter os fios eléctricos, os cabos de comunicações e até as perigosas condutas do gás completamente à mostra. Podias ser assim e no entanto serias mais estrutura e casa para mim do que todas aquelas que me oferecem sólidas moradias com garagem e jardim frontal.
Por isso haverá sempre uma estrada, ainda que mal alumiada, que leva à tua porta mesmo quando a tua frágil caixilharia não suporta uma porta. Serás sempre a minha casa e eu caminharei até ti, na pequena esperança secreta de um dia poder levar um camião cheio de materiais e ferramentas para te construir (de dentro para fora ou de fora para dentro, pouco importa) e te colocar um numero de porta e uma residência oficial, onde receber contas e cartas de amigos a viajar fosse o nosso hábito.
Tenho por ti a fé que se tem numa casa de aldeia por saber que embora não te habite diariamente preciso de ti para que a minha identidade não se perca e eu tenha sempre um local, uma pessoa, tu, que seja testemunha de quem eu sou.

18 de março de 2012

Amarelecer

Se forem vasculhar nas traseiras dos meus livros está lá um disco embrulhado em papel amarelo. O disco ainda tocará, julgo eu, como se o tivesse comprado ontem à tarde mas o papel, naquele orgulho mate que só o papel de embrulho tem, está de um amarelo tóxico que o tempo lhe trouxe naquela secura de ter perdido a sua razão de ser que é a de repousar no chão, rasgado após mostrar o que ocultava.
É só papel, sim, tal como lá dentro é só um disco, álbum, CD do meu artista preferido que escolheu, para gravar uns videoclips, um sitio onde uma vez estivemos juntos, aninhados para não bater com a cabeça no telhado.
Ando por aí a dizer que o tempo não traz velhice nem infelicidade. Apenas traz o amarelo. Viajam pelo ar uns amarelos anónimos que o tempo transporta e que nos cansam. Ficamos quebradiços e pálidos como o papel do embrulho que não lhe dei e perdemos o sentido de ser. O papel não a chegou a fazer sorrir, nem este disco que tenho ali escondido e que nunca lhe entreguei.
Às vezes perco-me na tristeza e no niilismo e fico parado a pensar e a sentir (que é o que se faz às coisas tristes, empurram-se para o fundo de nós, para a difícil digestão dos amores que partem e vão ser amores para outros lados). Não sei se o disco que por ali anda a amarelecer lhe fez falta. Agora que ela anda tão luminosa pelas ruas da cidade onde ainda habito e para onde ela me puxou será que lhe fez alguma falta a cor da minha música?
Fico por aqui a sentir e a pensar (que é o que se faz ao que se ama) e em mim cai uma camada de amarelo como se o pó de centenas de anos fosse minha comida e bebida. Ouço o disco que não lhe dei e é como se nem estivesse cá, tal é o vazio e a vaga de emoção que me deixa para nunca mais regressar.

11 de março de 2012

À minha duna

O meu melhor só me surgia quando estava triste. Era um facto tão meu quanto o meu nome que nos momentos de maior amargura a fertilidade de palavras aumentava, as ideias deixavam os meus dedos e marcavam as folhas daquele papel especial que o meu caderno tinha.
Depois vieste e mostraste-me que também com felicidade se consegue ser normal e caloroso. Contigo aprendi que a fertilidade depende das horas de sol que se coloca na face, nos braços e nos dedos. As minhas palavras saíam luminosas porque tu raiavas em mim com essa tua bondade e generosidade. Os meus dedos como folhas de um girassol a seguirem-te. Mas como é típico de todos os sois, e mesmo neste ano de chuvas ausentes, lá te escondeste e segues escondida sem aquecer as minhas palavras.
Sem ti como vão elas crescer?
Agora, já não me lembro do que era ser triste mas também já não te consigo apontar no calendário quando foi a última vez que sorri. Estou aqui sem tristeza e sem felicidade e sem as minhas palavras.
Estou sem ti.
Vou encher estes buracos que as coisas que me fazem falta deixaram com sono e palavras de outros, com passeios avulsos e o espanto dos dias que nascem sem que eu lhes peça. O buraco que deixaste, aquele maior e mais saliente (e do qual não falo a ninguém) fica aqui à espera que regresses com o vento como uma duna que demora a chegar mas que se ergue com calor e solidez. Se voltasses e te agregasses no meu peito criavas um processo contrário à erosão e fechavas o tal buraco com uma pedra rubra qualquer que me devolveria as palavras que tanta falta me fazem.
Tu, a minha duna!

Estas colocadas acima eram as últimas palavras que sabia escrever e tinha aqui reservadas para uma urgência, lê como se fossem sussurradas, preciosas como uma velharia, amostras de fragilidade e resiliência.
Guardei as minhas últimas palavras para ti, e que tal se voltasses?

26 de fevereiro de 2012

Dessaturação

Ando para comprar um cachecol laranja há meses. Mais de um ano talvez. Sou daquelas pessoas que acreditam no poder da cor para nos salvar a boa disposição e por isso mesmo só quem não me conhecia achou estranho ter namorado umas semanas com uma daquelas neo-hippies que fazem balões de sabão do tamanho de adultos na maior avenida da minha cidade. A roupa dela, a pele dela, até os olhos dela, de uma cor mais viva do que eu alguma vez tive ou conheci. Toda ela era vermelhos e laranjas e quando se cansou do meu cinza foi com a dessaturação da previsibilidade que a vi ir em direcção a novos caminhos de errante, numa avenida mais longa e mais recta que esta da minha cidade.
Falaram-me de verdes e azuis criativos mas foi no laranja que coloquei o meu objectivo. Ela, a artista de rua como gostava de ser chamada, não se deixava enganar e dizia-me
-A tua sala precisa de uma parede laranja
enquanto eu a tentava convencer que ter móveis de duas cores já era cor que bastasse. Na sala, como em mim, a roupa nunca pode ter mais de duas cores e essas são muitas vezes uma parte branca para uma parte preta. A sala precisava de uma parede laranja e já a teve precisamente no dia em que ela partiu com o pré aviso de uma chamada e sem chegar a ver a minha pintura apressada. Percebi então que eu também preciso da minha faixa laranja mesmo que ela não esteja cá para ver.
Ando hà meses para comprar um cachecol laranja, já disse, para trazer a cor que ela deixou, quase sem querer, na minha casa.

12 de fevereiro de 2012

A nossa praia

Havia uma praia abandonada naquele sítio e naquela altura. Às vezes, diziam, até a água se ausentava e enrolava noutras areias, colorindo de espuma outras rochas. Mas nessa praia, orfã de gente, estávamos nós a dar-lhe calor e pés que a marcavam e lá ficavam até ao eventual regresso da maré. Os nossos pés, dizia-te eu, contavam a história de estarmos juntos porque as pegadas misturavam-se e liquefaziam a areia como naqueles diagramas com solas, setas e números que ensinam a dançar Tango e Cha Cha Cha.
Cumprimos a promessa de dançar à hora das primeiras luzes da manhã. Se houvessem galos eles cantariam, tenho a certeza, mas à falta deles surgiram umas tantas gaivotas e periquitos-de-colar que antes do sol já coloriam os ares. Àquela hora, também nós fomos o primeiro sol, dançando próximos como duas estrelas que no encontro orbitam e que numa chuva amena se beijam ao som de nenhuma música.
Na realidade não estávamos na praia, não havia gaivotas nem periquitos-de-colar. Estávamos num passeio de uma rua qualquer a ouvir a rouca música dos poucos carros que passavam mas, ainda assim, o dia nasceu à hora da nossa dança e os lábios só se separaram para dizer, apontando
-Look, there's the sun
sem tirar os olhos dos teus.
É que o sol tem a graça de não nascer só nos montes e naquela estrada sem areia nem mar ele atirou umas dúzias de raios que inventaram um par de pássaros dos quais não sei o nome. O par de pássaros, que se note e não obstante a liberdade, não somos nós. São mesmo pássaros, asas, bico e música. Despiste-me de poesia porque agora anda por aqui uma ausência tua que nunca me abandona.
Após a dança não sonhei com mar e praia. Após a dança atingiu-me que como eu e tu, as estrelas, não havia mais ninguém no nosso planeta porque, àquela hora, só ali o sol nascia dançando e os sonhos, esses, são mais saborosos de olhos abertos.

5 de fevereiro de 2012

Pigmento

Dizem por vezes relativamente a Cesário Verde que este foi o primeiro escritor-pintor de Portugal pela forma como inseria ricos mundos pictóricos nos seus poemas. Várias vezes senti as mesmas dores que ele, ignorado pelas intrépidas moças para as quais, à altura, eu não estava à altura.
Mas até Cesário, cálculo, teria dificuldade em encontrar na sua paleta palavras para descrever certas cores e foi disso que me lembrei quando me disseste nessa tua língua complicada de entender que os teus olhos tinham uma cor
-Indefinível
com essa mesma palavra, usada inocentemente e de forma espontânea, tentaste-me pintar uma aguarela que respondesse à minha pergunta
-Afinal de que cor são os teus olhos
dita naquela língua que é tua e da qual só sei uma quantidade limitada de frases.
De facto indefiníveis eles eram e assim ficaram sem que eu me preocupasse muito com isso porque o melhor que nos acontece fica nesse intermédio das coisas mágicas que acontecem sem explicação, imagem ou palavra. Entre nós houve e haverá daquela poesia que não se guarda numa folha, o teu cheiro não cabe em nenhum frasco, o sabor do teu beijo não existe em nenhum condimento de nenhum mercado bairrista de nenhuma cidade do Mundo.
Dizem que aguarela é uma das técnicas de pintura mais difíceis de dominar. Tenho então tempo para aprender a pintar com a água tingida até que um dia vou descobrir que cores tenho de misturar para chegar ao tom dos teus olhos e aí parto à aventura de descobrir novos tesouros teus sobre os quais me debruçar.

14 de janeiro de 2012

Caminhos do Desejo

Disseram-me um dia que no Japão os jardins não têm caminhos.
Têm relvados, arbustos, canteiros, fontes e tudo o que é de esperar num jardim europeu mas caminhos nada. Só após a inauguração do jardim é que começam a surgir os primeiros sinais de formas eficazes de atravessar o dito jardim. Lentamente surgem traços como uma teia ou um jogo de correspondências como os que fazíamos na escola primária. A essas uniões que unem pontos opostos que, por alguma razão, interessaram a várias pessoas o suficiente para desbravarem relvado virgem dá-se o nome de caminhos do desejo.
Caminhos do desejo porque foram as pessoas, através do seu desejo de unir dois locais distintos que trilharam a rota. Dizem-me que após essa fase de experimentação o jardim volta a fechar para se proceder à pavimentação dos tais caminhos.
Quando me disseram isso fiquei a pensar se connosco também não seria assim. Dois grupos juntam-se e depressa se desbravam os caminhos necessários a juntar o A com o 2 ou o B com o 4 como nas fichas da escola. Depois o C e o 1 apaixonam-se e formam uma avenida principal como temos no Palácio de Cristal a Avenida das Tílias.
O jardim que todas estas pessoas são fecha-se ocasionalmente para repavimentar a amizade e o amor com estradas em que a brita é substituída pela ternura. Não há nada que compacte o carinho como a ausência e o subsequente reencontro.
Nestes caminhos do desejo que nos unem não vejo obstáculos nem saudades inconciliáveis, para todas aquelas vezes que a relva mal cortada parece proibir os abraços calquemos com mais força para amarelecer de vergonha o tempo e as ocupações que nos afastam. E sempre que um buraco te torça os tornozelos e te faça uma mancha esverdeada nos joelhos eu estarei lá para te fazer rir da parvoíce de caíres depois de te levantar e te dar um beijo que, se não estavas, te pôs logo boa.

8 de janeiro de 2012

Sorte

No mundo todo há quatro tipos como eu. A sério. Procurem na internet quem são os quatro jogadores de poker mais bem sucedidos e vai estar lá o meu nome. De todos eu sou o que tenho mais sorte mas não sou o melhor. Eles leem mentes através de comportamentos reflexos dos outros jogadores e calculam probabilidades de determinada carta sair em determinada altura. A mim simplesmente saem as cartas certas na altura certa.
Os alcoólicos procuram no final de cada copo uma família, o amor perdido, o dinheiro necessário para endireitar o negócio da família. Como no final do copo há nada, só secura e abandono, reforça-se a dose à espera que no final do próximo apareça por magia o final da dor.
Estou ainda para conhecer um bêbedo que beba porque gosta de beber.
O mesmo acontece com o jogo. A um não viciado pode parecer que nos estamos a divertir. Não estamos. Estamos à espera que as coisas comecem a correr mal. Estamos à espera de perder vinte milhões de dólares numa só mão e reencontrar nesse final da sorte ao jogo o início da sorte no resto. A tal família, o tal amor, em alguns a saúde. Dinheiro, felizmente, é preocupação que já não temos.
Quando a minha mãe se apercebeu que eu transportava o gene do pai dela, que nem conheci, benzeu-se três vezes. Contou-me que os homens da família tinham todos essa boa fortuna de fazer fortuna sem esforço. Ela estava convencida que até príncipes tínhamos na nossa genealogia mas eu ignorei até chegar ao secundário e ganhar sempre à sueca.
Nas noites familiares ao Dominó.
Na faculdade apostas desportivas.
Qualquer coisa que envolva aleatoriedade eu transformo em dinheiro.
Pelos vistos o gene não se transmite a mulheres. Elas ao invés têm sorte ao amor, razão pela qual a minha mãe casou cedo, foi feliz e teve filhos cedo mas foi sempre pobre. O meu pai, das melhores pessoas que este planeta já aqueceu, morreu cedo traído pelo seu próprio gene defeituoso herdado sabe-se lá de onde.
Às vezes calham-me umas tantas mãos seguidas em que perco e penso que acabou, ganhei dinheiro que baste para três vidas de cem anos, chegou a hora de partilhar a minha pérola, que nasceu aqui um dia mas que eu por estar só, tão só, não sei a quem deixar.
Ocorre-me que a sorte me tenha abandonado naquelas ocasiões seguidas em que as mãos não prestam e as cartas não são favoráveis. Mas lá ela volta, pacientemente esteve à espera que eu acreditasse na sua partida para depois me surpreender e dizer de novo um olá que me sabe azedo.
Aceito o que ela me dá, até me deixar vai ser sempre assim, não sei como lhe fugir. Ela sorri e eu vou a jogo.

1 de janeiro de 2012

Bissexto

No fundo das escadas havia o quadro eléctrico, eu lembro-me.
A electricidade estática fazia o teu cabelo elevar-se no ar e eu, preocupado com o teu penteado, passei a dominá-lo com as mãos juntas, todos os dias. Na sombra da janela da porta, quando saíamos à noite, devia parecer aos vizinhos que eu te estava a esganar.
Penso nisto enquanto mexo num par de fios desligados da serie de luzes que usamos na árvore de Natal deste ano. Uma amostra de árvore para uma amostra de apartamento onde vivemos eu, tu e dois vasos com um girassol cada um. Vive também uma cama feita e um sofá para três numa sala onde todos convivemos com o tapete, com as cortinas e com uma televisão pousada numa estante adaptada que também vive cá.
Adoptamos há uns tempos um gato e uns livros. Do gato nunca mais soubemos e os livros foram morrendo das feridas que as unhas do gato deixaram na sua lombada, desfigurados como leprosos. Perderam os títulos e os autores com excepção do livro de poesia que te ofereci no ano em que nos conhecemos.
Era um ano bissexto e passar esse ano contigo foi como aquela hora que se dorme mais quando a hora muda sem pensar na ocasião em que a hora recua. Ganhamos um dia ao nosso tempo e ao aproveitá-lo nunca mais recuamos.
Hoje, podemos simplesmente ir ver como cai a chuva a cem quilómetros daqui, podemos ir verificar se a estátua daquela terra onde fazem a feira de enchidos está limpa ou dar a nossa opinião sobre o relvado daquele mosteiro do século XVII que há perto da casa do teu bisavô. Hoje aperto-te o cabelo como fazia antes de arranjarem o quadro eléctrico e beijo-te, como se te estivesse a asfixiar com as mãos e os lábios.
Os vizinhos devem achar que somos bizarros. Espero que sim.