27 de junho de 2010

Apontar

Todos os rapazes sabem que nas festas conhecem raparigas mas é preciso chegar à vida adulta para perceber que nas festas se conhecem mulheres. E durante algum tempo essas mulheres, belas que são, apenas existem no gémeo da perna discretamente exposta, no promissor decote em V ou nas pupilas dum par de olhos azuis que dilatavam a cada pulsar das luzes. Ora, a Inês era isso tudo e mais umas centenas de caracóis castanhos que me apontava como se fossem dedos indicadores.
Como transformar uma perna, o fenomenal decote, as pupilas inadvertidamente exageradas ou os cabelos em tema de conversa é outra das coisas que só na vida adulta se entende. E faz-se, com maior ou menor dificuldade até porque o sorriso da Inês não podia ser postiço, era largo demais, com aquela doçura que só os sorrisos de dentes tortos têm. Uma aproximação lenta, um
-Olá, boa noite.
a resposta envergonhada e os tais dentes enviesados a filtrarem um
-Olá
que mal conseguia vencer a música.
O resto, como escrevem os jornalistas quando querem encurtar os artigos, é história. Mais sorrisos, toques de ombro, danças (africanas, latinas e outras), bebidas e a confissão súbita
-Desculpa, tenho de ir embora.
E foi. Foste. Inês.
Tu que me poderias apontar o que quisesses: uma mão cheia de caracóis, um desses teus olhares relaxados que reduziam a pupila e aumentavam a íris azul como água de piscina, os lábios, mãos, pés ou um mamilo, um prego para furar a parede quando pendurássemos uma das minhas fotografias ou os teus diplomas na nossa parede preferida da nossa casa.
De tantas coisas que podias apontar e nem o número deixaste, nem o teu nome inteiro para te procurar à minha maneira. Nada. Só o nome Inês, a perna e o decote, os dentes infantis e o olhar como um anel fino de prata.
Há coisas que só descobrimos na vida adulta, uma delas é que nunca deixamos de permitir que façam de nós uns miúdos.

6 de junho de 2010

Vou comprar umas calças vermelhas

É injusto que apareças assim no meu autocarro, tu com mais sete anos do que tinhas quando reprovaste no décimo primeiro e eu que esperei por ti até ao fim da faculdade que tive de ir tirar às ilhas. Tão burros nós éramos meu deus, as notas e os professores concordavam e eu passei a acreditar que não seria nada nem ninguém como o meu pai me dizia quando eu era pequeno. Esperei por ti num lugar ao qual não se chega de autocarro e só agora fica a menos de vinte contos, desculpa, cem euros a viagem de avião. Não contava que num momento de turbulência, no voo, claro, tu estivesses lá ao meu lado a fazer conversa de circunstância e de repente
-Vánia? És tu?
e seres mesmo. Não contava com isso. Mas entrares no meu autocarro, sentares à minha frente e brincares com o relógio é que não; agitares o cabelo e o perfume mesmo ali, à distância da grossura de um livro de poesia do meu nariz, era como se fosses de repente uma assistente de bordo ou a única capitã a pilotar aviões da TAP. É injusto que entretanto tenhas aprendido a combinar os sapatos vermelhos com o relógio vermelho que por sua vez brilhava com as leves flores vermelhas que a tua camisa branca aberta até àquele ponto que só as mulheres crescidas sabem qual é. É injusto que as calças de ganga fossem tão bem com o azul dos teus olhos que, raios me partissem se não olhassem para os meus (nem que tivesse de me deitar à tua frente mas havias de olhar!) não me conheceram.
Não foi fuga tua. Tu não me viste absolutamente nada.
É injusto andares agora a aparecer por cá, uma vez hoje e quantas mais no futuro nem sei, eu que me mantive ao teu nível e à espera, eu que derreti a minha média em explicações de um ano que não era o meu e tardes a estudar o que a tua mãe depois nos apanhou e proibiu de estudar e à espera. Eu que ainda hoje não aprendi como se combina uma camisola com um casaco como deve ser, calças de ganga só das muito azuis e muito gastas e o relógio, esse fiel velho, ainda é o mesmo que o meu pai me deu na última vez que achou que eu valia alguma coisa. Mantive-me burro e deselegante para ti e entretanto alguém te ensinou a ser uma mulher. Daquelas que abrem a camisa até aquele ponto que só elas sabem onde fica.