25 de outubro de 2009

Naturalmente

As coisas que fazemos bem sabemos como as fazer sem olhar. Fazemos-las até mesmo sem pensar nisso. Não pensamos em respirar, deixar bater o coração ou até em andar. Queremos que algo aconteça e ele aparece feito.
Pergunta a um pianista ou guitarrista se pensam que têm de atingir a nota tal que está na pauta para o fazer acontecer. Eles dirão que não, no início talvez mas agora já é automático e fácil. Tal como respirar.
Para mim é automático encontrar as teclas correctas do computador e conduzir. Essas coisas acontecem dentro daquela zona do meu cérebro que guarda as tarefas repetitivas e que vão sendo refinadas. Claro que também automático em mim é amar-te.
Acontece porque sim e sem pensar. Sem sequer pensar para onde direccionar o coração ele virou-se sozinho para o teu sentido e por lá segue, sem se arrepender da estrada percorrida e sem sequer consultar mapas, placas ou GPS's.
E como é automático, como é tão meu como respirar, sou muito bom nisso. Sei como te tratar e o que fazer para sorrires. Com naturalidade, como se viesses com livro de instruções e seguisse sempre o capítulo mágico que aborda o que fazer quando tudo o resto falha. Aquelas soluções incríveis que tudo resolvem. Que tornam tudo estupidamente fácil e que põem o resto dos mortais a perguntar
- Como fizeste isso?
e eu a sorrir com a naturalidade com que negoceio o difícil estacionamento na tua rua.
Toco-te como nas teclas do computador e guio-te como nas estradas à noite e à chuva. Respiro-te.
Amo-te.

18 de outubro de 2009

A quem tudo se perdoa

Há pouco tempo, em discussão salutar com uma amiga, dizia-lhe que se Deus existe como bóia de salvação da gente desesperada (e ainda ontem foi dia mundial da depressão) também acreditava em Deus porque assim é uma ideia auxiliadora e não uma entidade salvadora. Ideia essa de que não preciso mas à qual reconheço utilidade.
Se há na terra mostras de divindade será naqueles objectos ou pessoas que nos causam o Stendhal Effect. Este efeito foi relatado pelo escritor francês Stendhal aquando da sua visita a Florença e durante a qual o mesmo sentiu aceleração do batimento cardíaco, tonturas e até alucinações quando estava perante uma peça de arte de excepcional beleza ou uma grande quantidade de obras num só local. Desde o início do século XIX, quando em 1817 a descrição apareceu num livro de Stendhal, até aos finais do século XX (em 1982 foi reportado o primeiro caso oficial) milhares de casos surgiram. Entretanto também Paris foi associada a este fenómeno por causar os mesmos sintomas no Louvre e nos monumentos emblemáticos.
É aqui que vejo o paralelo com aparições religiosas.
Alucinações relacionadas com um sentimento que não compreendemos de onde vem, geralmente provocado por uma peça de arte que não sabemos descrever são o de mais religioso podemos experienciar. É fé que vem de dentro.
E a gente é mastigada pelos deuses e vigarizada por falsos profetas e mesmo assim continua a construir-lhes obeliscos e menires de formas e valências diferentes. Mesmo assim perdoa as falhas justificando com as suas próprias que supostamente justificam o castigo deles. Aos deuses tudo se perdoa.
De volta aos artistas, os meus únicos deuses porque já Nietzsche dizia só conceber acreditar num Deus que dançasse, são eles que movimentam paixões e fanatismos semi-religiosos. Só eles têm a capacidade de nos deixar ficar mal e/ou cair em desgraça e nós ali a perdoar e acreditar. A defender perante quem ataca a legitimidade da devoção.
Também os artistas parecem ter características mártires de cristos. Penso de imediato em Maradona, Chet Baker, Elis Regina e uns tantos pintores envenenados pelo chumbo das tintas dos pincéis que afiavam com os lábios. Gente danificada pela sua arte e que agora serve de estudo de caso para que os artistas actuais, coitados, não danificados pela arte mas pela sua asfixiante falta de talento, justifiquem as depressõezinhas e demais doidois mentais.
No filme "Maradona by Kusturica" o Deus dos relvados questiona para o ar o que teria sido dele não tivesse havido a cocaína.
Eu respondo.
Teria sido o mesmo. Mas acrescia ao conhecimento mundial informal de ter sido o melhor jogador de todos os tempos o reconhecimento formal das instituições em vez do simpático e bem comportado Pelé.
E um Deus é isto. Falha por sistema mas é adorado e ouvido com atenção. Um magnetismo que move tantas montanhas como milhares de pessoas de joelhos numa catedral. Como traças a ver a luz lá vamos nós embater com o nariz no vidro.
Esta semana Maradona disse relativamente aos seus críticos, pedindo desculpa às senhoras presentes na sala, que "a" chupem e que "a" sigam chupando.
Aos Deuses tudo se perdoa.

11 de outubro de 2009

O Mecânico Constante

Os tradutores enganam-se muitas vezes. Coitados. Tenho genuína estima e pena por eles que andam consumidos de lado para lado a ganhar úlceras nervosas e hérnias de esforço à procura de tradução para uma frase que em inglês soa tão bem mas em português não sabe a nada.
Assim aconteceu com o filme The Constant Gardener traduzido para português como O Fiel Jardineiro. A confusão foi que o tradutor viu o filme e achou que o leitmotiv (olha cá está uma palavra intraduzível) era a fidelidade de um homem em ir até ao fundo de uma questão pela honra da memória da sua amada. Confusão normal e compreensível mas, na minha humilde opinião, errada.
O elemento central do filme é o fascínio e devoção masculina pela manutenção. A forma como este "jardineiro" paciente se rodeia das suas plantas e trata delas tem tanto de devotamente religioso como uma peregrinação.
Qualquer homem poderá testemunhar da alegria que é tomar conta das suas coisas. Há quase tanto prazer no mudar o óleo do motor ou as pastilhas de travão de um carro como conduzi-lo. Só dessa forma sabemos que não andamos a ser enganados por um placebo que alguém disfarçou e nos impingiu.
Somos assim nós homens quando as nossas ninfas privadas surgem depois do banho, ainda dentro de toalhas do tamanho de casulos gigantescos, e nos pedem que espalhemos um creme hidratante ou façamos uma massagem naquele sítio qualquer que doi. Há muito de egoísta nisto porque não só estamos a cuidar do que amamos usufruir como usufruimos durante o cuidado. Nós que tantas vezes temos vontade de parar enquanto as amamos só para ver, assim um intervalo contemplativo para absorver a beleza inatingível de cada suavidade feminina, e não podemos, com medo de sermos ridículos ao ponto de mais tarde entre as amigas haver o desabafo dessa coisa estranha que fizemos numa noite que foi parar a contemplar a estátua viva que ali amávamos.
Ainda no Fiel Jardineiro há o agradecimento da personagem masculina à feminina pela maravilhosa dádiva de esta ter feito amor com ele. Raios, nós somos tão ridículos...

4 de outubro de 2009

Faz-me lá a vontade

Não te preocupes com a água salgada das lágrimas amor. Não vai ser a falta delas que te vai fazer desidratar nem o sal enlouquecer. Deixa-as cair e não as limpes; hidratam o rosto e dão-lhe um brilho fugaz como a luz do luar sobre uma janela. Se quiseres bebe-as, tal como te disse não te enlouquecem como aos náufragos que por cada golada de água do mar se sentem ainda mais sedentos. Sabes, percebi já há uns anos que as lágrimas só são amargas se a mágoa que a pessoa deixa for maior do que a doçura que foi espalhando. Podemos estar descansados não achas?
Vá, deixa que as lágrimas corram, não as aguentes que os olhos incham e ardem, ficam vermelhos e toda a gente sabe que tentaste não chorar e não conseguiste. O mundo não acaba hoje acredita. Vamos sempre ter os nossos passeios e cozinhados. Vamos conseguir lembrar sempre a quantidade de açúcar que cada um gostava no café e quanto queijo gostávamos ambos no esparguete. Vamos poder ouvir os nossos tangos, cada um em sua casa, com nova pista de dança improvisada e quiçá um novo par para ambos, à frente do aquecedor amarelecido de incandescência sem uma única lágrima.
Não chores amor que eu vou sempre lembrar como estava o teu cabelo da última vez e reparar que o tens diferente. Lembrarei sempre também os vestidos que o teu guarda-vestidos guarda e dizer-te como é bonito e te cai bem o cinza curto que um dia vais ganhar coragem de comprar e vestir.
Pronto, está bem, chora lá um bocadinho vá. As lágrimas não são más como as pessoas as julgam. Entala a voz numa dúzia delas. Se não por mais nada, pelo menos, para te livrares da dor que te deixo ao partir.
Sei lá... Chora para me mostrar que te custa eu virar costas. Chora por favor. Uma lágrima triste que cai ao chão e seca à frente do aquecedor.
Caramba.
Chora, diz que me queres e que podíamos tentar de novo porque só assim eu sei que há doçura entre nós e que não estavas ansiosa pela minha partida. Eu parto na mesma claro mas ainda assim gostava de saber que tenho lugar na tua vida.
Pronto não chores, tudo bem.
Eu pego na minha tralha, despeço-me do canário que compramos juntos e que não canta para não se despedir de mim. Pego em mim e trago-me para fora de tua casa e tu podes fechar a porta com a naturalidade de quem julga que volto no dia seguinte.
Mas não volto e fico a pensar a partir de que distância a madeira da tua porta consegue isolar o som do meu choro.