3 de junho de 2012

Habitual

Cansado, deitado no chão, sem responder à pergunta 
-Como se chama? 
deixem-me, se já não tenho unhas nos dedos nem me lembro como ganhei estas cicatrizes secas nas mãos serei ainda um homem?
Há uns anos eu era o Alfredo. Boa pessoa, trabalhador, casado e com dois filhos. Podia ser usado como exemplo em manuais para explicar o que era um homem normal e expectável.
Não consta que as aves migratórias se fartem da primavera, se assim fosse elas não rumavam a sul com as primeiras chuvas de Outono. As aves amam a Primavera e por isso seguem-na para todo o lado. Nunca se pegam a um sítio. As aves, como as pessoas, pegam-se a sentimentos e por isso tanto umas como as outras migram entre sítios que lhes dão esses sentimentos. Por isso não levo a mal que a minha família tenha migrado tal como a minha casa não se zanga pela ida das andorinhas. Deve ser da nossa natureza respeitar a Natureza e portanto tanto mulher como filhos foram para locais mais quentes quando por cá chovia e eu era um trovão em vez de um sol.
Perguntam-me
-Tem alguém em casa? Sabe onde mora? Vive sozinho?
e não respondo por vergonha. Peço um copo de água com orgulho e bebo-o lentamente. Quando o INEM chega perguntam-me 
-Como se chama?
e antes de poder responder um dos paramédicos diz
-Não te incomodes, é um habitual
e eu, que nunca gostei do meu nome, penso que me poderia dar por esse nome. Tal como há gente chamada Amável e Defensor eu poderia tornar-me no Habitual. Ter um desses nomes convidativos que parecem fazer uma introdução às pessoas como se andassem para todo o lado com um folheto que as explicasse.
-O seu nome é Alfredo não é?
e não respondo, ainda agora mudei de identidade e já vem um gajo qualquer dizer que me conhece
-Ainda na semana passada o socorremos. Tem de deixar a bebida Senhor Alfredo
O meu nome é Habitual, ainda há pouco você disse aí ao seu colega que eu era habitual. Escolha um nome por favor, a ventos tantos, a primaveras tão frias que passaram perdi a conta a quem sou.
-Agora vamos lá Senhor Alfredo, vamos para a ambulância, fica no hospital umas horinhas
Afinal sou o Alfredo na mesma, obrigado pela ajuda mas deixem-me cá estar, frio por frio, nome por nome, fico aqui deitado que o tempo vai passando e as aves lá em cima olham-me nos olhos como que a querer levar-me com elas.

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