31 de janeiro de 2010

Liquidação Total

Quando chegaste achei insensato que numa aldeia onde já se queimaram bruxas, onde se queimaram bruxas até depois de já não o fazerem em lado algum, quereres abrir uma loja de bruxarias. Nesta terra cremos em bruxas porque as há e sabemos quem são. É ver as senhoras correr para a mãe de santo para curar o casamento do filho ou o mau olhado que cai sobre as terras. Depois o dinheiro desaparece e ninguém diz porquê. Nos rumores do povo é o homem que joga ou bebe, derrete o dinheiro na boa vida, tem outra mulher.
Mas como ia dizendo, uma terra assim fechada e silenciosa precisava de uma loja que a obrigasse a falar no mercado. Esta terra precisava de uma pouca vergonha que a abanasse. Por isso admirei a tua coragem logo no primeiro dia ao copiares o vestido da deusa de louça de tamanho real que está na montra. Aquele tecido leve, transparente, aberto naquele decote que suplantava o da deusa em comprimento, largura e volúpia. A deusa, ideal e perfeita, não tinha o teu peito nem fazia esvoaçar o vestido, bastante acima do joelho, sempre que arrumavas umas cartas de tarot, uns incensos ou, que deus me perdoe, colocavas uma bola de cristal na última prateleira.
Na nossa biblioteca há dois livros sobre o oculto. Um sobre tarot e outro sobre runas. Para pedras já chega o meu trabalho e como sempre me safei bem à sueca trouxe o livro para casa e estudei tarot. Um plano genial que culminaria na minha entrada triunfal na loja, tu apanhada desprevenida a arrumar um livro de costas para o balcão e eu a dizer
-Ando à procura de um baralho de tarot de 1956
Assim como vou à cidade e peço um vinho de 2006. Com ar conhecedor, interessado e interessante. Uma comunhão de interesses. E tu a pensar na sorte que tiveste em vir para esta terra esquecida pelos deuses encontrar alguém como eu.
O tarot não tem nenhuma ligação à sueca. Não tinha tanta consciência disso como depois de estudar no livro. Esta era uma evidência que provavelmente me apontarias se o meu plano fosse simplesmente entrar na loja, de olhos envergonhados a perguntar sobre o que ali se vendia. Esse até poderia ser melhor plano. Não sei.
No dia em que acabei o livro, uns dois meses depois de o requisitar, decidi que era a altura certa de te fazer a tal visita. Da janela de minha casa via-te lá dentro com um ar aborrecido. Dizia-se que o negócio não te corria bem. Vendias umas velas aromáticas e pouco mais. Nesse mesmo dia, pela hora do almoço vários papeis no vidro diziam "LIQUIDAÇÃO TOTAL". Ainda nesse dia vi o teu olhar triste, a planetas do olhar desafiante e atitude atrevida, tão longe da deusa de louça como no primeiro dia a deusa estava de ti. Vi a tua atitude de desprezo a ver as velhas a entrar todas faladoras e interessadas como verdadeiros abutres de promoções que são. No final compravam uns incensos e estava feito.
Tinha pouco tempo portanto saí de casa com o plano B nas mãos. Entrei, o espanta espíritos a anunciar a minha chegada (lá se ia a parte do plano A em que te surpreendia de costas), tu a olhar vagamente para mim como se olha para um livro que não apetece ler e a dizer com pouca vontade de dizer fosse o que fosse
-Boa tarde, que deseja?
-Queria saber se a estátua que tem na montra também está à venda
Tu a hesitar...
-Não está. Estou com problemas em pagar a mudança daqui para fora mas a estátua é o que faz a montra, não a posso vender.
-É pena...
Tu a sorrires levemente. Parecias estranhar como se já não sorrisses à anos
-Mas para que queria a estátua?
-Estou a ver que vai embora. Vai antes que eu tivesse coragem de vir cá pedir-lhe explicações de tarot. Se eu ficasse com a estátua era um bocado seu que ficava comigo.

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