14 de fevereiro de 2010

Pianinho

Não te devolvi a foto que trago na carteira. Tu provavelmente nem te lembras de ma dar tal como eu não me lembro se ma deste ou se fui eu que ta roubei. Ela está ali, desafiadora e esbugalhada como tu. Parece até por vezes que me está a marcar o plástico como se o teu maxilar se enterrasse lá e tudo à volta fossem altos.
Enervava-te eu não tolerar barulho e de ti o único barulho que me agradava era o som dos teus passos flutuantes, esses pés pequenos largos nas sapatilhas brancas que só a Adidas faz. Aquele raspar nas pedrinhas como se ao andar calcasses pedaços de lâmpadas fluorescentes. Atrás de ti era como se caísse noite. Era como se fosses a assistente de um mágico e à tua passagem um pano de veludo preto caísse. Basicamente reescrevias a história porque ao passares havia um antes de ti e um depois de ti. Claro que na altura eu nem pensava muito nisso porque estava no teu presente, tu o meu ponteiro dos minutos comigo sempre a olhar em frente de braço - nunca mão - enlaçado.
Mas é como te digo, todos os teus outros barulhos me enervavam. Ao dormir não só me adormecias o braço com o teu maxilar afiado como expiravas imenso. Ao cozinhar mostravas nas panelas o talento que te faltou na bateria. Até na cama, no sexo ou algo mais, a tua anca estalava e eu parava com medo de te estar a desmontar alguma coisa.
No dia em que no seguinte já não regressaste desceste as escadas descalça, tijoleira fria e tu a descer. Nem um som de ventosa do pé descalço. Nada. Disseste
-Tenho de ir indo.
e fostes indo.
Se soubesses que tenho ainda aqui a tua fotografia, que vejo sempre que me pedem o cartão do ginásio, gritavas e batias - literalmente - com o pé no chão (Não gostava do som mas o gesto era amoroso) e como nunca gostei da tua voz nem estou para te ouvir partir lâmpadas mantenho a carteira fechada, abafada como se num daqueles dias em que dormias no meu braço, em vez de deixar que o teu maxilar me cortasse a circulação, eu te acordasse só para te mandar calar com um estalo na cara.

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