10 de maio de 2009

Amanhã à mesma hora

À janela está o caminho para casa.
As janelas dos autocarros já não abrem. Não conseguimos espetar a cabeça fora da janela tipo gárgulas de Notre Dame e sentir o vento a pentear. (Engraçado como o vento só penteia as crianças… Envelhecemos e o cabelo torna-se antónimo. Despenteia-se e nós enervamo-nos.)
O ar não se renova dentro dos autocarros e, se lá dentro sentimos frescura, tudo foi provocado pelo ar condicionado que dá aquele ar de água parada num copo… É um ar com uma fina película de pó por cima.
Não sabe ao mesmo que da fonte. Não sabe ao mesmo que da janela.
Passar 20 anos numa casa não aborrece porque podemos pintá-la ou enfeitá-la de quadros e vasos luminosos mas não me deixam pintar a casa amarela do fundo da rua, não me deixam cultivar rosas no jardim da rotunda e muito menos me deixarão pendurar passpartouts das minhas viagens nas paredes do autocarro. O caminho que já conta 20 anos angustia na sua inércia como um familiar em coma que não conta histórias repetidas.
Aí vi-te! Como não reparei em ti? Como entrei e não me capturaste logo?
Levantas-te para sair e ainda usas o mesmo perfume. Levantas-te e estás mais alta. Usas outra roupa. Ganhaste algum peso que só te fica bem. Ao telemóvel uma gargalhada de que não me lembrava. A memória é uma folha escrita a lápis.
Faltavam-me 12 paragens (acredita em mim, conheço o trajecto) e saí atrás de ti… Ao vento o cabelo que finalmente deixaste crescer.
Quem te convenceu?
Eu que tantas vezes te disse que ficava melhor a sibilar pelas costas e tu que tantas vezes disseste que gostavas de ver o teu pescoço de perfil. Quem te fez esquecer o pescoço?
Sigo atrás de ti. É claro que te vou agarrar como dantes. Ainda te lembras como te tapava os olhos como se tivesse sido eu e não o cinema a inventar o tapar dos olhos a sussurrar ao ouvido?
E lembras o que dizia todas as vezes que o fazia?
Tu que eras tão atenta mas nunca me vias chegar dizias
-Não usas perfume… Não te sinto chegar.
E eu compensava com o toque que dizias ser frio como uma concha porque estava gelado ao primeiro contacto mas logo aquecia.
-E é bom aquecer-te meu búzio.
Estou mais próximo. O teu cabelo como bandeiras numa cimeira internacional. O teu cheiro a levitar como quando saías do banho sem toalha e ias à cozinha procurar a esfregona. Nunca vi ninguém tão preocupado com a saúde da tijoleira.
Passavas de volta e dizias
-Não te ponhas com ideias.
e eu ficava com as ideias e o aroma. Ficava eu e a casa docemente infectados por ti.
É quando estou à distância do meu antebraço que afinal não és tu. O vento sopra e o cabelo toca-me na cara e é mais leve que o teu. De raspão vejo um pescoço que não tem as tuas veias. De olhos a cair noto que ao ombro faltam alguns ossos que só tu tens.
Ela, seja quem for, olha para trás a acusar-me de uma coisa que não sabe o que é. Jovem, nem precisa ser advogada para saber que não é crime ter saudades nem é crime manter memórias das pessoas. Muito menor crime será ser ridículo. Portanto não me acuse de nada, sim?

Conheço homens que vestiram novas mulheres como as anteriores. Deram-lhes a mesma música a beber, mudaram-lhes a marca do tabaco, ofereceram sapatos com o salto à medida dos olhos da outra. Fazem amor com elas às escuras e enganam a memória da textura com a lembrança de outra pele.
Mas nada transforma mais uma mulher noutra do que oferecer o mesmo perfume que um outro pescoço à mostra espalhou pela casa.

1 comentário:

  1. Seria pecado se nunca publicasses estes textos.
    Gostei muito e é mais um para eu seguir!
    Beijinho!

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