17 de maio de 2009

Rosa cheiraria a Rosa mesmo que o nome fosse outro

Chego a Allaire e mando-te uma sms:
“Allaire”
Nem espero pela resposta porque sei que ela não vai chegar mas seja como for gosto que saibas por onde ando. Já te mandei sms em Vitré, Bubry e Morbihan.
Há uns meses fui à Austria e tive de te ligar. Achei que ias gostar de saber que tinha passado por uma terra chamada Pyhra. Pareceu-me ser nome que gostarias. Não atendeste… Atendeu o teu marido que me disse, após uma dúzia de mentiras bem colocadas sobre a minha identidade, que tu estavas na maternidade. Dois dias antes tinha nascido o vosso filho.
João.
Assim um nome vulgar e humano. Tinham de me explicar isto…
-João quê?
-João Filipe.
-João Filipe quê?
-João Filipe Sousa Matos. Porque pergunta?
-Nem um nome de local?
-Desculpe?
-Local… Não lhe chamaram João Porto ou João Aveiro ou João São Petersburgo?
-Não. Que coisa estranha. Porque pergunta isso?
Desligo e fico a ferver em como vendemos os sonhos com tanta facilidade desde que tenhamos um novo par de braços que os concretiza.
Debaixo da cama, na gaveta do meio do aparador e nos bolsos de casacos que deixaste no guarda-vestidos os sinais do teu doce fanatismo e das viagens que fizemos na busca do tal nome. E relembro todas as vezes que fizemos amor nos comboios de Espanha, França, Itália, Eslováquia, Eslovénia ou Inglaterra e registávamos nas costas dos bilhetes o nome da estação seguinte.
Lembras-te quando enganamos as regras porque a nossa menina não se podia chamar Nancy?
E quando achavas que estavas com enjoos matinais porque, pelas tuas contas, tinhas engravidado naquele voo Porto – Funchal? Decerto te lembras de me perguntar
-Sobrevoamos as Berlengas ou é só água?
-Não te preocupes. Chamamos-lhe Atlântica e está decidido.
E nunca foi… Nunca estavas grávida. Nem de uma Lublina ou de uma La Rochelle. Uma Geltru ou uma Cádiz.
Abrandamos na euforia, o tempo passava e nem de Braga, Leça, Coimbra, Leiria ou Lisboa engravidaste. Foi no Porto que descobrimos (no Porto nunca fazíamos amor porque havias de ter uma menina e ela não podia ter um nome masculino) que nem em Fátima ou Lourdes poderias engravidar.
Eu não te poderia dar essa alegria por mais que escalássemos a Serra da Estrela ou a Senhora da Graça.
Demoraste só uma semana a mudar de mim. Não me surpreendeu a forma como de repente me tornei descartável. Na torradeira, porque tu sabias que o que mais falta me haveria de fazer eram as tuas torradas, um bilhete escrito à mão sem sinais de mancha de lágrimas, batom ou uma pequena borrifadela de perfume
“Sabes qual é o meu maior sonho. Desculpa, tenho de o seguir.”
Compreendi. Talvez encontrasses um motorista ou piloto de aviões que te levasse àqueles sítios onde tu dizias querer adoptar o nome para que a tua filha (sim... dizias sempre tua; nunca nossa) tivesse sempre um pedaço de terra que fosse dela. Sempre que se perdesse pensava no sitio que lhe deu nome e lá chegaria como um pássaro migratório que tem ninho sempre na mesma chaminé.
Um dia ligaste a perguntar onde eu estava e disseste-me
-O meu sonho de ser mãe sobrepôs-se à teimosia de dar um nome geográfico. Era uma parvoíce. Nós corrermos tantos sítios foi uma parvoíce. Sou tão feliz aqui que percebi a tolice que andei a fazer.
-Aqui é onde?
-Ovar.
-Caramba, não admira que lhe tenhas chamado João Filipe.
-Sentiste falta das minhas torradas?
-Claro que senti. Deixaste os casacos e as luvas. As torradas eram a terceira coisa que eu mais gostava em ti.
No sitio onde estou há um vale. Os vales formam-se onde outrora houve um rio que entretanto se foi. Quer-me parecer que o espaço entre costelas aumentou quando tu te evaporaste. Quando o nosso amor deixou de fluir.
Deixaste cá um vale com o teu nome.

2 comentários:

  1. Lindo...e não tenho mais palavras, só um nó na garganta!

    ResponderEliminar
  2. 'Demoraste só uma semana a mudar de mim.'

    ...ler isto num momento em que só me apetece sentr no chão e fingir que o chão não existe e deixar-me cair...é perceber que há palavras que quando juntas formam pensamentos que dizem aquilo que não queremos dizer a nós mesmos.

    ResponderEliminar