23 de agosto de 2009

Asas

Há um momento antes da partida em que não somos nós. Somos outro qualquer sem história ou herança. Somos uma tábua rasa como um bebé acabado de nascer.
Depois um tiro ou uma voz
- Vai!
e voltamos a ser o que somos. O treino que nos levou até ali. A dor sem a qual não chega o ganho. A história do esforço e a herança de um corpo bom.
O medo que o corpo rompa.
E é rápido, muito rápido, que nos movemos, um grande passo de cada vez de forma que correr já não é equivalente a andar rápido mas sim a voar raso. Um toque esguio de cada vez como uma garça ou cegonha em descolagem de um lago. As vozes na cabeça
- Dói-me a coxa
ou
- Da última vez ia mais equilibrado
ou
- Já perdi tudo só na partida
o descrédito e o joelho que só com injecções curou a última das tentativas de bater o recorde. O pé que tocou no chão mais do que devia.
A voz do primeiro treinador
- O pé não toca no chão. Só os dedos. Só os dedos!
Não há gravidade alguma. Não há piscina que transmita tanta leveza como correr. Correr com o corpo todo. Levantar as pernas o mais possível e castigar o chão por nos querer prender. Empurrar os braços como um boxeur para a frente e para cima a cortar o ar. A cara deformada do esforço e da deslocação da massa corporal. O coração que quer correr mais que nós.
Não sei como é com os pássaros mas com o Homem são as pernas que lhe dão asas.

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