28 de junho de 2009

Pocahontas

Muito antes de eu saber o que era uma mulher bonita já a mulher mais bonita da praia era aquela. Tinha um olhar tristonho encaixado na cara oval. O cabelo negro descia pelas costas e perdia-se até ao final da coluna acabando mesmo ali, no início da anca que ia sempre tapada com uma saia comprida preta. E tal como no cinema, as mulheres belas de olhos chorosos e cabelos torrenciais têm um passado que não deixa o futuro em paz.
Esta mulher, que pouco tempo depois encontraria na personagem da Disney, Pocahontas caso esta tivesse a pele de uma camponesa nortenha, arrastava sempre à sua frente um homem mais velho. Uma efígie sentada em eterna contemplação como um pensador de Rodin a olhar em frente. A cara esculpida muito mal cicatrizada às mãos do tempo. Esta estátua era o pai da Pocahontas nortenha.
Dizia a lenda local, porque mulheres daquelas precisam de explicação e mesmo que não a haja inventa-se, que naquela família corria uma doença que aos trinta anos tolhia os movimentos e sensações. Era quase como uma maldição bíblica de um Midas que transformava a sua prole em granito. A mãe da Pocahontas tinha partido há muito sem lhe deixar nada a não ser os olhos largos e a anca doce que enchia a saia preta de brilhos de veludo.
Não sei o que a animava. Especialmente quando dava o iogurte às colheres de chá ao pensador havia nela uma graça e ânimo que parecia estar sempre grávida. Parecia que para ela havia esperança a cada colher de chá de iogurte natural como se estivesse a alimentar um filho. Ela, como a mãe do pai. Imaginem a Pocahontas a viver na Ilha de Páscoa e a alimentar uma das austeras estátuas a desejar, porque os olhos grandes têm mais líquido lacrimal e transparecem como lagos, poder tê-la no colo.
Assim era a mulher mais bonita da praia para a qual eu ia.
Há cerca de ano e meio morreu o melhor amigo do meu pai e eu fui ao funeral com o intuito egoísta de observar como o filho do falecido, um ano mais velho que eu, lidava com a perda do pai. Na minha família também há genes raquíticos e há que estar preparado para todas as eventualidades.
Teria a Pocahontas uma bola de cristal na figura granítica do pai? Estaria ela a ver no que se ia tornar?
Teria ela tomado a decisão de não continuar a transmissão do gene granítico acabando assim com a maldição da família?
Ela deixou de ir à praia e ao longo dos anos fui conhecendo mulheres que me mostraram o que eram ancas perigosas, olhos límpidos e cabelos como estradas. E nunca vi essas coisas que as mães deixam às filhas de herança numa jovem a arrastar uma cadeira de rodas com uma cariátide alimentada a iogurte natural numa colher de chá sentada em contemplação, silenciosamente, como uma estátua onde deixar uma rosa todos os dias parece fazer a diferença.

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