13 de setembro de 2009

A face que enviou mil navios

Certa noite sonhei que ela adormecia ao meu lado, no carro, numa qualquer viagem. Por intermédio das curvas ou necessidades de conforto toda a face dela estava virada para o exterior, no sonho dela, a ver fosse o que fosse.
Um sonho dela dentro do meu sonho.
Iamos a caminho de qualquer sítio feliz, disso tenho a certeza. Embora não saiba quem ela era sei que no sonho era a minha mulher, casados ou não nem interessa, ela minha mulher e eu homem dela, assim com posse e segurança e submissão insegura. Durante todo o sonho, que nunca deixou de ser um sonho, eu só lhe via a parte de trás da orelha, o cabelo no ombro adormecido como ela e o pescoço relaxado. Tudo do lado esquerdo.
Não a tentei virar, não tentei ver quem ela era. A paz raramente necessita de feições.
Passei anos a pensar nesse sonho, associei-o à magia das viagens com os meus pais e ao enorme desejo que tinha de conduzir e amar. Conduzir carros amar mulheres. Por esta ordem.
Um dia, enquanto conduzia uma delas no regresso a casa, uma pergunta não regressou com resposta. Ficou ali suspensa entre o barulho do motor e o ritmo suave da música. Pensei em dezenas de razões para ela não me ter respondido. Conduzi quilómetros até que me ocorreu questionar se ela tinha ouvido. Ainda por cima era uma pergunta banal e sem gravidade. Não havia razão para não me responder.
Ao olhar na direcção dela. A resposta.
Ela dormia. Um sono leve, interrompível com o mínimo solavanco. Ao contrário da mulher do sonho eu via-lhe a cara e fiz questão de lhe dizer, quando chegamos e ela acordou com a quietude do carro (bela estranheza esta de termos medo de acordar alguém com um solavanco mas conseguir que ela desperte ao ausentar os movimentos), que ar engraçado ela tem quando dorme. Perder o sorriso e ficar séria não é nada o estilo dela. Ao dormir, as suas bochechas caem como se o sorriso dela fosse a gravidade zero de toda a face, anulada pelo adormecer do resto do corpo.
Ela sorri. Beija-me.
E eu lá sem inspeccionar a orelha ou o cabelo rabiscado pelo ombro que tapa o pescoço que fica também por comparar. Eu só a inspeccionar o olhar dela e as bochechas, já na lua ou submersas com o sorriso que ela abre, a elevar toda a cara. Cara que, na do sonho, nem conhecia.
A paz às vezes tem face e não há sonho mais pacífico que aquele.

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