11 de setembro de 2011

Onze

Na minha casa não entravam muitos livros. Eu não achava que me fizessem falta mas, nas raras ocasiões em que recebia um livro, eram pequenos mundos que se abriam. As letras e as imagens, de preferência muitas das segundas e poucas das primeiras para não maçar.Nos idos de 98 recebi um livro perfeito. Aquele que veio na altura que eu mais precisava e que juntava um lado prático a uma perspectiva teórica infalível. Um livro de cromos!
Mais especificamente o livro de cromos do Gil, mascote da Expo 98, que numa quantidade interessante de autocolantes nos levava numa volta pela arquitectura do mundo. Claro que o Taj Mahal me fascinou tal como é evidente que a Ópera de Sidney me confundiu. Na altura ainda pouco sabia de arquitectura e de gravidade e talvez por isso os dois edifícios que mais me fascinaram cabiam num só cromo.
Eram dois simples pedregulhos estriados que se elevavam acima de todos os outros numa cidade pródiga em pedregulhos gigantes ornados. Naquela caderneta destinada a abrir curiosidades e vontade de viajar os meus olhos caiam sempre no mapa mais à esquerda, no quadradinho onde os dois pedregulhos se irmanavam em verticalidade.
Nova Iorque. Cromo 36.
Passaram alguns anos. Os suficientes para fazer uma mão cheia de amigos e aprender que viagens, aos quinze anos, só aquelas que combinávamos para os meses de férias e que incluíam sumos na praia. Naquele dia a Sara, que era tão inteligente como irresponsável, ia fazer o último exame de recurso de Métodos Quantitativos e depois ia comigo beber um sumo ou comer um hamburguer ao shopping onde parávamos naqueles dias que antecediam o reinício das aulas. Nessa altura a minha independência parecia-me a mesma de um adulto. Combinava coisas, carregava o meu próprio telemóvel com o meu próprio dinheiro e almoçava em casa sozinho, enquanto cumpria o ritual familiar de ver o noticiário às refeições.
Nova Iorque. Cromo 36. Fumo, chamas. Confusão.
Eu não sabia que os pedregulhos podiam arder. Ao mesmo tempo. Não sabia que existiam pactos fratricidas suicidas. Não sabia que era tão perigoso viajar de avião. Ainda assim acreditava que na terra dos filmes os fogos apagavam-se como nos filmes independentemente da altura dos castelos. Haveria sempre aqueles inocentes caídos para chorar mas eu ainda podia ir visitar os dois pedregulhos e bem lá do alto cumprir o sonho que vivia daquele autocolante. Sim, já tinha 15 anos mas ainda sabia pouco de gravidade e arquitectura. Resistência tênsil e térmica eram conceitos que nem eu nem o jornalista dominávamos e portanto quando o primeiro pedregulho caiu torcendo as estrias, aos flocos em vez de tombar inteiro como um ponteiro dos segundos desgovernado, ficamos ambos surpreendidos. Pouco tempo depois o irmão gémeo caiu como que fulminado por uma doença hereditária degenerativa.
Mais mortos do que eu posso numa só vida chorar.
Tenho tudo em VHS, gravado em directo. Se não pude ver os pedregulhos em vida vejo-os na sua morte como um familiar afastado de quem se tem cartas e videos que o transportam a este tempo que já não viu, para ser lembrado por este familiar com quem não conviveu.
Na altura avisei a Sara que não podia ir ter com ela. Que tivesse boa sorte no exame. Quando chegasse a casa ia perceber porque desmarquei.
Nova Iorque. Cromo 36 de uma caderneta que já não tenho. Os sonhos substituem-se e a arquitectura também, pois há dias em que, como homens, crescemos dez anos.

2 comentários:

  1. Provavelmente dos melhores textos sobre o 11 de Setembro que irei ler hoje

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  2. Ó Ana obrigado!

    É tudo verdade. Tinha mesmo uma caderneta do Gil e uma amiga Sara que foi fazer o exame de Métodos Quantitativos e perdeu o companheiro de lanche!

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