18 de setembro de 2011

Tecido vivo

Vai sempre haver arrependimento e mágoa pelos volumes ausentes que deixaste cá. Em cima da cama, nas estantes, no meu coração e até no cinzeiro desactivado onde deixaste as chaves. Por aí toda tu e parte de mim, derramados e tristes como aqueles postes que iluminam ruas de prédios devolutos onde só moram velhos que vão para a cama às nove da noite com os respectivos falecidos.
Li que o Kurt Vonnegut certa vez deu um espirro tão forte que lhe saiu pelo nariz um pedaço de tecido vivo com veias e tudo. Isso inspirou-o a escrever um livro. Não tenho costume vigiar os lenços usados à procura de restos do meu corpo saídos pelos olhos e pelo nariz quando, por vezes, no início daquela música, a meio daquele filme ou no final, sempre no final, do riso hienico de uma gaivota eu choro sem parar. Às tantas já cuspi um pulmão inteiro e parte do estômago. Às tantas o sangue circula em mim mecanicamente sem nenhum coração para o espremer.
Às tantas cuspi-te a ti toda, não fetal já adulta, saída do meu olho direito, naquele lenço de papel de cozinha que estava ali mesmo à mão quando há um ano te fiz a mesa e o jantar e as velas acesas e nem apareceste.
Uma vez disse-te que tinhas a sombra mais clara de todas, os mais leves ombros e a respiração mais doce. Hoje falei de ti e tudo em mim escureceu, pesou e azedou.
A culpa foi minha, sempre, a culpa foi sempre minha amor.

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